07/02/2024

Cerca de 150 praticantes de artes marciais reuniram-se no Porto no passado sábado, dia 3 de fevereiro, para criar laços através do treino. Com idades entre os três e os 83 anos, vindos de diferentes pontos de Portugal e também de Espanha, todos testaram o corpo com uma ideia em mente: os valores são a melhor arma de defesa pessoal. 

 

Henrique e Teresa queriam que os filhos praticassem desporto e viram no kenpo uma fonte de “competências que a escola”, na sua opinião, “não dá”. Salientam a “concentração” e o “cumprimento de regras”. “Saber defender-se também é importante”, diz a mãe, mas logo contextualiza: “não é para usarem”, apenas para “terem algumas ferramentas de defesa se for necessário”. A filha Francisca, de sete anos, presta atenção aos instrutores, segue as indicações e ainda tenta segurar o irmão mais novo. 

 

 

Com cinco anos e uma saudável irrequietude, António destaca-se entre os atletas de todos os tamanhos reunidos no Pavilhão Municipal do Viso, vindos da Invicta, de Famalicão, Coimbra, Vila França de Xira, Lisboa, Alhandra, Arruda dos Vinhos e também da Galiza. Contorna a correr dezenas de corpos imóveis, ri entre quem apenas escuta e sai do rigoroso alinhamento do grupo para interromper o kyoshi Pedro Porém. Pede-lhe apoio para apertar o cinto do kimono, minutos depois para soltá-lo. O diretor técnico da União Portuguesa de Karaté Kenpo (UPKK), que organiza este Estágio Ibérico de Artes Marciais, ajuda-o sorridente e confirma no gesto que, aqui, todos têm lugar. 

 

 

“O objetivo deste evento é criar um espírito de convívio e camaradagem entre todas as artes marciais”. Por isso há gente não só do kenpo, mas também do karaté, da defesa pessoal, do jiu-jitsu ou de disciplinas vietnamitas. Porém explica que, além da “partilha”, pretende-se “fomentar, junto dos jovens, princípios e valores que infelizmente na nossa sociedade já se começam a ver menos”, como “o respeito, a cortesia, a honestidade ou a atitude positiva perante a vida”. Entre alongamentos, e ainda antes de atender o pequeno António, reivindica a importância desta área no desenvolvimento “da autoestima e da autoconfiança das crianças”. 

 

 

Na mesma direção aponta o basco Rafael Carriet, convidado do encontro. “O kenpo abarca tudo, tem uma componente desportiva e outra de trabalho e enriquecimento pessoal”, diz, antes de também elencar algumas linhas orientadoras: “trabalhamos a cooperação, o respeito, a tolerância, valores básicos para depois se poder conviver”. O líder do clube Atama Kenpo Taldea já tinha participado em vários eventos da UPKK, mas nunca no Porto. "A organização, como sempre, está impecável". Para participar conduziu 800 quilómetros, desde Eskoriatza, localidade do País Basco, na companhia da esposa. O regresso será “tranquilito”, vão aproveitar “para desfrutar de Portugal". Segundo explica Carriet, “neste tipo de treino coletivo mostra-se que, para lá das fronteiras marcadas nos mapas, todos temos a mesma raiz”. O fluxo de informação criado permite “encontrar um ponto de união, uma mesma linguagem, quer sejas basco, português, galego ou de qualquer outra parte do mundo”. 

 

 

Conquistas em competições e no cotidiano 

Também do lado espanhol, mas de mais perto, chegou o outro visitante de honra, Mario Hermo Alonso, diretor do departamento de kenpo na Federação Galega de Karate. É responsável pelo clube de Vila Garcia de Arouça, presente no Viso com uma comitiva de cerca de 70 pessoas, e é já um repetente na cidade. “É uma maravilha vir ao Porto porque sempre nos tratam de forma genial e nos encanta”. Concorda com os companheiros na relevância do estágio (“é um evento muito importante na Península Ibérica, uma forma de nos irmanarmos, de unirmos laços de amizade entre a Galiza e Portugal”) e nos valores que a modalidade transmite à juventude (“a disciplina, a ordem, a amizade, a importância de levar uma vida saudável”). Na sua equipa, querem que os ensinamentos transcendam para “uma aplicação na vida real, tanto nos estudos como no trabalho”. E detalha: “não procuramos campeões, mas sim pessoas úteis à sociedade". 

 

 

Mesmo que as vitórias do dia a dia sejam o foco de Hermo Alonso, também das provas os seus discípulos retiram troféus. Com 11 anos, Karim Otero, filho de mãe marroquina e pai galego, é campeão espanhol de sub-12 e fala com a lição bem estudada. “Diverti-me muito quando ganhei, que é o mais importante”. Só vê “coisas boas” no kenpo: “ajuda-me muito na vida, aprendo a concentrar-me e a separar as coisas – de um lado o desporto, do outro os estudos". Treina três vezes por semana e ainda tem tempo para praticar rugby e padel. “Há que experimentar muitas modalidades até encontrar aquela de que mais gostas", sentencia como um guru. A mãe, Meryem, revela que o rapaz tem muita energia e que o desporto é útil para canalizá-la. “Ajuda-o a ter constância e ensina-lhe que para ter resultados é preciso trabalhar”. Para ela, só por desconhecimento alguém poderá relacionar este desporto com a violência – “é precisamente o oposto!” – e coincide com Karim sobre o fundamental: “o mais importante é que a criança desfrute do desporto, se não gosta não vale a pena”.  

 

 

Agilidade sem bilhete de identidade 

Enquanto Meryem fala, o filho e os outros atletas mais novos rastejam de costas, sob as ordens de Marta Ambrósio, o rosto da Atitudo, academia portuense que coorganiza a iniciativa. Também a energia desta sensei parece inesgotável. Apresenta-se com a saudação “aloha” (pois o kenpo que aqui seguem é da linhagem havaiana) enquanto circula de grupo em grupo: incentiva as crianças, torce o pescoço a matulões e mima os “seus” seniores do Saudável-Mente. Metade dos 24 alunos deste programa do Município do Porto estreia-se num encontro do género. “São uma população que precisa muito do sentido de comunidade, de fazer atividades em grupo”, explica a professora. “Ao início achavam que não tinham idade para fazer uma arte marcial, pois a partir dos 60 parece que é uma coisa impossível, mas não é”. E gaba-lhes os resultados: “fisicamente estão muito mais resistentes, mais fortes, e são um grupo muito unido”. Ambrósio fez questão de os trazer aqui “para eles saberem que fazem parte de uma organização, que há outras pessoas aqui da mesma geração, uns com poucos anos de experiência, outros com muitos, e que as limitações físicas não são exclusivas da idade deles”.  

 

 

O entusiasmo de quatro das suas alunas, à saída do pavilhão, confirma o acerto da decisão. “A professora Marta, pelo que nos dá, merecia a nossa presença aqui”, justifica Fernanda, de 66 anos. Com mais nove, Maria de Fátima, a mais extrovertida do grupo, explica as vantagens do programa que frequentam semanalmente: “é bom para o nosso equilíbrio físico e mental, é bom pelo convívio... olhe, é tudo bom!”. Arminda, prestes a fazer 80, conta que “antes andava na ginástica e assim, mas isto é diferente”, agora sente-se mais segura. Maria João, com 67, explica que as aulas “são fantásticas para a mente, tornamo-nos amigos e fazemos muito exercício”, por isso é que “a sala está sempre cheia”. E também riem? “Muito”, exclamam em coro. “Umas das outras e de nós próprias”, acrescenta Arminda. E fisicamente sentem-se melhor? “Sem dúvida”, novamente em uníssono. Maria de Fátima retoma a palavra: “hoje foi bonito, trabalhámos com outros sênseis e eles ficaram maravilhados connosco, nós fizemos tudo certinho e direitinho, até dei um murro naquele grande, só que depois esqueci-me e virei-me, não se pode dar as costas depois de atacar”. A septuagenária só ficou com um lamento: “apetecia-me andar lá de rastos como aquela canalha – eu consigo fazer aquilo, tenho muita agilidade”. 

 

 

Reportagem: Francisco Ferreira

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