08/06/2021

No número 181 da Rua de Santo Isidro, em pleno coração da cidade do Porto, há, por estes dias, um corre-corre para que tudo fique a pronto a tempo. A Brâmica, espaço dedicado à cerâmica, é o quartel-general de uma das tradições mais aguardadas do São João: a Cascata Comunitária, uma representação fiel, em menor escala, do casario mais reconhecível da cidade do Porto. Na contagem decrescente para a construção das 300 novas casas, que se juntarão a tantas outras dos anos anteriores, há ainda muito a fazer, com a colaboração de 150 pessoas.


As mesas, espalhadas pelo espaço, estão ocupadas por matérias trabalhadas a diferentes ritmos. Cada uma delas tem, desta vez, e neste ano, apenas um ocupante. “Regras impostas pelo Covid-19, a nova normalidade”, diz-nos Teresa Branco, a formadora. No ar, música clássica. “É a Antena 2, ideal para nos envolver neste tempo que aqui passamos”, atira. A um canto, alguém que abdica da música clássica para ouvir a sua própria playlist, em auscultadores que envolvem toda a audição. “Este é o espaço da imaginação”, acrescenta, a rir. Ao fundo do atelier, as cores, as tintas, os pincéis, o sol que entra pela janela desafogada, que filtra o calor que se faz sentir na rua.


Umas das participantes, franja milimetricamente cortada e meias amarelas, cuida dos detalhes da sua pequena casa de barro para que nada falhe. Minuciosa, sem levantar o olhar a quem passa, toma o trabalho com a responsabilidade que a tarefa assim exige. É a última paragem antes da construção ser submetida às altas temperaturas do forno que ainda descansa, a esta hora. Um processo que culminará com o repouso final numa mesa à entrada, onde as construções – todas diferentes – são perfiladas, até serem transportadas até à morada final: a grande Cascata Comunitária de São João, instalada, em mais um ano, no Mercado Temporário do Bolhão, a partir do dia 21 de junho.


 

Lotação esgotada

“Nunca pensei que o barro tivesse tantas possibilidades, é uma novidade para mim. Consegui inscrever-me e este poderá mesmo ser um passatempo daqui para a frente”. Anna Krupa dos Santos é uma das duas cidadãs estrangeiras que se inscreveu na sessão da manhã desta terça-feira, 8 de junho. É polaca, vive no Porto há seis anos e, admite, veio para ficar. Do que mais se recorda quando chegou à cidade é, precisamente, das Festas de São João. “É uma festa que transmite, acima de tudo, felicidade, união. Adorei a comida, o convívio da rua e as tradições associadas como o manjerico, o alho porro, os martelos”, revela. “Descobri esta tradição [da Cascata Comunitária] quando passei o primeiro São João na cidade, em 2016. Gostei muito desta ideia, de replicar em ponto pequeno as casas típicas da cidade, feitas pelas pessoas do Porto. Achei uma tradição muito linda”, revela Anna, olhos de azul profundo que comunicam para além da máscara que (obrigatoriamente) tapa o rosto em cada uma das sessões deste workshop.


É a primeira vez que participa nestas oficinas, “tive a sorte de ainda me conseguir inscrever”, ri, com o olhar. Anna é um dos 150 participantes que passaram pelo atelier durante as últimas semanas, colaborando de perto numa tradição que perpetua a memória de todos. “Esgotamos a lotação destas oficinas em poucos dias, o que demonstra o carinho dos munícipes por esta tradição”, revela a formadora.



Duas horas por oficina

Organizada pela Câmara Municipal do Porto através da empresa municipal Ágora Cultura e Desporto, a Cascata Comunitária de São João é um dos projetos que, do ponto de vista social, tem contribuído para a materialização do referencial coletivo de um dos símbolos mais tradicionais da Festa de São João da cidade do Porto.


As oficinas para a construção (cinco, no total) são orientadas por Teresa Branco no seu espaço, a Brâmica. Um atelier que respira matérias naturais em todos os pormenores, criatividade em todas as peças expostas e em construção. Dela partiu esta ideia de recuperar uma tradição que nunca irá morrer, acredita. “Há cerca de quatro anos que desenvolvo este projeto, no ano passado tivemos uma paragem. Este foi um desafio que lancei à Ágora porque sou uma apaixonada pela cerâmica e pela cidade do Porto. É uma forma de possibilitar que todos tenham acesso à cerâmica e a todos os elementos que a compõem, como a água, terra ar e fogo”, revela Teresa, acrescentando que estes “workshops levam as pessoas a saírem fora do seu sistema habitual, o que permite que a pessoa se revele a ela própria”.


As oficinas têm a duração de duas horas por dia, “o tempo ideal para se construir uma casa como esta”, aponta Teresa Branco. “Claro que depende das ferramentas e das capacidades de cada pessoa que se inscreve, mas em duas horas é possível dedicarmo-nos a uma casa, com piscina, com terraço, com aquilo que quisermos e estiver no nosso imaginário”. E acrescenta que até é possível construírem-se as famosas “ilhas da cidade do Porto, absolutamente geniais em termos da materialização da construção”, apontando para um conjunto horizontal de pequenas casas alinhado na ponta da mesa.


 

Aprofundar conhecimentos

Com precisão, usando um lápis e desenhando com cuidado os pormenores que irão alindar a sua construção, Marta Carrapa, natural da Foz, diz que esta é a fusão perfeita de dois prazeres pessoais. “Eu e a minha amiga, aqui comigo hoje, já trabalhamos em cerâmica há algum tempo. Esta é a oportunidade que temos de aprender novas técnicas e contribuir para a festa de São João, que adoro”. Aos 23 anos, revela que é uma “boa aprendizagem para relaxar e para fazer uma pausa na semana de trabalho”. “É um bom local para conviver com outras pessoas e aprimorar os métodos que conhecemos, até porque já faço pequenas cascatas em casa, todos os anos, com a minha família”, acrescenta.


Experiência essa que transpõe para este workshop, onde a liberdade é a palavra (e o sentimento) de ordem. “Pedimos que as pessoas possam fazer o que quiserem nas suas casas, fazerem mediante o seu entendimento e as suas referências. Podem abrir janelas, fazer portas, decorar as casas. Há quem coloque pequenos gatinhos desenhados, vasos, estendais de roupa, as nossas famosas clarabóias. Tudo isto são elementos que remetem à memória coletiva da cidade”, refere Teresa Branco, evidenciando as potencialidades do barro e da sua modelagem. A imaginação não tem limites.


 

Sonho torna-se realidade

Tendo como referência a icónica imagem do imenso casario que desce a encosta até ao rio, na zona da Ribeiro, a Cascata Comunitária de São João reflete a visão pessoal dos habitantes locais mas “também das pessoas que, de fora, vêm residir para a cidade, com diferentes perspetivas e pormenores, como os azulejos das fachadas”. Que o diga Mayinka Margarita, natural da Polónia e a residir no Porto há oito anos. Num português que escorrega ainda em rasteiras linguísticas, reconhece que a paragem na cidade “aconteceu por acaso”, porque a ideia era ficar “em Espanha”, mas o Porto acabou por deixar marca. “Gosto da cidade pela tradição, gosto do São João”, atira, como se de um slogan se tratasse. Inscreveu-se na oficina sem conhecimento prévio da matéria, “gosto de pintar e fiquei curiosa com esta experiência”.


Mayinka diz que esta oficina permite que fique “muito relaxada”, deixando os problemas à porta. “É como se existisse outra realidade aqui, pudesse fugir dos meus problemas e entrasse num mundo da imaginação”. Um mundo onde o sonho é possível ser concretizado. “Sempre tive o sonho de ter a minha casa e agora tenho a minha casa no Porto.”, ri Mayinka, voltando para o espaço que ocupa. Espera ansiosamente o momento em que possa pintar a sua construção, a fim de a juntar às muitas que esperam o contacto com o público. “A meta são as 300 novas casas. Há muito a fazer ainda. Mas vamos conseguir”, finaliza Teresa Branco, enquanto olha as mesas, a pouco mais de 10 minutos de terminar mais uma sessão.


O espaço da pintura é agora o mais ocupado, quatro participantes partilham cores e acabamentos. A menina dos auscultadores ainda se mantém no mesmo lugar, como se o tempo tivesse parado. No ar, a Antena 2 mantém o ritmo. Abafa, lá fora, o barulho da cidade que mantém o ritmo alucinante do dia-a-dia. Os encontros repetem-se a 10 e 13 de junho, quando novos interessados se juntarem a este momento único de partilha coletiva. 


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