Como um elixir, um segredo bem guardado ou uma terapia que não se explica, apenas se sente, os atletas de natação adaptada encontram na água o remédio ideal para minimizar a diferença. Hélder e Luís são mais dois exemplos de persistência, de como o desporto mudou um destino que podia ter sido diferente. São atletas do Futebol Clube do Porto e alinham com o emblema no coração. Porque ser dragão é mais que representar um clube, é fazer parte de uma família. Com esta reportagem encerramos um ciclo de três matérias sobre a natação adaptada na cidade do Porto, na véspera da realização da décima edição do Torneio de Natação Adaptada, que acontece nas Piscinas de Campanhã.
Alfredo conhece todos pelo nome. Não há atleta, aluno ou pai que não passe por ele, à entrada ou à saída, e não o cumprimente com entusiamo. Alfredo é parte da família, uma espécie de guardião de um temp(l)o, muitas vezes é ele o primeiro a chegar, outras tantas o último a sair.
Foi ele que abriu a porta, pela primeira vez, da “renovada” Piscina de Campanhã, em 2015. Já lá vão quase dez anos a ver entrar e sair miúdos e menos miúdos, bebés que cresceram por entre aquelas paredes, alguns chegaram ainda dentro da barriga da mãe. As recordações que guarda de outros tempos não lhe faz ter saudades de um passado pouco risonhos, até porque o presente é mil vezes melhor que as histórias que o edifício conheceu.
“Até amanhã, Sr. Alfredo”, “adeus, até amanhã”, responde. Não há quem saia sem lhe deixar uma palavra amiga, a promessa de um regresso no dia a seguir e um desejo de noite tranquila. Porque no dia seguinte todos eles, mais novos ou mais velhos, acompanhados ou sozinhos, premiados ou amadores, encontrarão Alfredo à porta, de sorriso no rosto, a tratar muitos pelo nome próprio, num olhar cor de água. O relógio bate a hora de fecho, o fim de mais uma noite de treinos, a chuva cai miudinha por entre as luzes e as árvores de copas despidas. Na Piscina de Campanhã, é assim todas as noites. “E ainda tenho de fazer as rondas pelos diferentes espaços, para ver se nada ficou fora do sítio, deixar tudo pronto porque amanhã é um novo dia”, diz-nos. Ali, alia o trabalho a uma recordação pessoal, ao local onde o filho se tornou homem.
Hélder Sousa, o capitão
O Complexo de Piscinas de Campanhã, equipamento municipal cedido ao Futebol Clube do Porto há uns anos, é atualmente o mais próximo que os atletas têm de um centro de alto rendimento na área das atividades aquáticos. É aqui que treinam as equipas de natação e de polo aquático do clube, desportos que ajudam a tornar o clube ainda mais vencedor. “É aqui que, todos os dias, a Angélica André treina 200 piscinas, duas vezes por dia”, confessa-nos Alfredo, o segurança do equipamento.
Mas não só. É também aqui que, quase todos os dias, a equipa de natação adaptada tem encontro marcado com treinadores e colegas para o treino habitual. Começam pelo ginásio, para o devido aquecimento, passam depois pelos balneários e terminam na piscina, o local onde tentam chegar ainda mais longe, conquistar segundos preciosos e melhorar as marcas pessoais.
Mas este local é ainda mais especial. Hélder Sousa tem 48 anos, é portador de deficiência motora e conseguiu chegar a capitão de equipa de natação adaptada. Há quatro, cinco épocas que carrega o azul forte, “a cor do clube do coração e que me deixa muito feliz”.
Sentado na cadeira de rodas, que usa para todos o lado, está ansioso por mais um treino. Confessa que o próximo fim de semana será especial, pois foi precisamente num Torneio de Natação Adaptada no Porto que tudo começou. “Não me lembro do ano, mas lembro-me da emoção que senti dentro de água”, revela. Não falhou nenhum campeonato nacional e até experimentou as provas internacionais. Mas mais do que competir, é o prazer de fazer parte de um espaço que o deixa feliz, “com benefícios a nível da saúde motora e psicológica”.
“Chego aqui e é como se terminasse mais um dia de stress. Encontro esta ‘família’, que me ajuda a focar noutras questões e a tentar superar-me cada vez mais”, sintetiza.
Desporto adaptado como aposta do clube
Atualmente, a equipa de natação adaptada do FCP tem 15 atletas, de diferentes idades, com diferentes níveis de deficiência e a competir em diferentes classes. São mais os elementos que fazem parte deste desporto, mas os federados, aqueles que estão no patamar mais elevado, são estes 15 magníficos.
Mas para que eles brilhem, há um conjunto de treinadores que acreditam. Catarina Cascais tem 35 anos, é treinadora há duas épocas e transitou da “natação pura” para a adaptada. “Foi um desafio que me foi colocado pela equipa e que decidi aceitar”. E sem conhecimento prévio do que seria necessário para lidar com desportistas com necessidades especiais.
“O primeiro embate que tive foi apenas positivo: só temos de lidar com eles como com os restantes. Não tive a necessidade de adaptar praticamente nada, apenas adequar a linguagem em determinadas situações, ser mais objetiva. Mas, tirando isso, é um treino de natação com atletas de alta competição, tal e qual como os demais”, resume esta futura mãe.
A equipa aposta na integração de elementos mais novos, mas nem todos conseguem treinar neste nível. “Temos algumas solicitações de novos elementos, mas eles têm de possuir já um padrão de natação para ingressarem aqui. Não estamos a falar de uma fase de aprendizagem, de aulas de natação. Falamos já de competição a sério”, resume a treinadora.
“O clube não diferencia o desporto adaptado do desporto dito ‘normal’, damos todas as condições a estas atletas como damos a todos os atletas das diferentes modalidades”, assume Joana Teixeira, responsável pelo departamento de Desporto Adaptado. “Aqui eles têm à disposição o departamento médico, que é composto por médico, fisioterapeuta, mas também por podologistas, por exemplo. Há ainda apoio psicológico, aconselhamento nutricional e uma equipa de treinadores especializados que, com eles, os levam a alcançar os objetivos traçados”, acrescenta.
Atualmente, o clube tem apostado no aumento de modalidades, contando hoje com equipas de goalball, boccia, ténis de mesa, futsal e basquetebol. “E em todos estes desportos temos ainda equipas de formação, que vão ajudar a engrossar, ainda mais, o número de desportistas no futuro”, resume Joana. São já 100 os atletas de desporto adaptado no clube, com margem de progressão. “De forma moderada, pensando sempre no melhor para todos”.
Luís Nascimento, o mais novo
Se Hélder é o mais velho, capitão de equipa, Luís Nascimento é o mais novo. Tem 17 anos, é uma das mais recentes “conquistas” desta equipa “com fome de vencer” e a deficiência motora que tem não lhe retira o sonho e o sorriso (um e o outro vivem de mãos dadas).
Há quatro anos que nada nas águas de Campanhã, e elas, sem saberem, tornaram-se “milagrosas”, pela “força física e mental” que lhe dá.
“Quando cá cheguei tinha muitas dificuldades em movimentar-me, precisava sempre de ajuda para entrar e sair da piscina. Hoje já consigo fazer percursos longos, não me canso, consigo subir as escadas sozinho”, conta-nos, como se de vitórias estivesse a falar. E são, na realidade. “Antes usava talas e hoje já não preciso de as usar”. É por isso que reações como “a natação mudou a minha vida” não é frase feita, é dado adquirido.
“É ao vermos estes progressos [nos nossos atletas] que nos anima mais a investir cada vez mais. Os objetivos renovam-se a cada ano, bater os recordes pessoais, melhorar as marcas alcançadas. É um trabalho feito um a um, mas que, depois, num todo, tornam a equipa mais forte”, resume Catarina Cascais. É tornar a equipa vencedora, como se entende, na lógica de que, juntos, conseguem nadar mais rápido, mais longe. Ser sempre melhores – e, quem sabe, mais.
Luis sabe que é ali que, ao final de cada dia, irá ter o seu momento. O momento em que, depois de um dia de escola, onde os problemas (também) acontecem, irá esquecer tudo. “Nadar é simplesmente isso, colocar-nos dentro da piscina e nadar, com o foco alinhado no nosso objetivo”. É o final feliz de dias incertos, é o final feliz de uma vida que passa por peripécias e contratempos.
Tal como a de Alfredo, o segurança que trata a Piscina por casa, uma espécie de mordomo da “mansão” onde só os melhores conseguem vencer. “Mas todos eles são vencedores, nem sei como eles conseguem”, admite.
É hora da ronda. Acena-nos com a promessa de voltarmos, sempre que quisermos. Porque amanhã o dia começa bem cedo. E nada pode falhar. Para os atletas. E para isso sabe o que tem a fazer.
Texto: José Reis / Sara Santos
Fotos: Nuno Miguel Coelho