Que os livros fazem (e sempre fizeram) parte da nossa vida, disso não temos dúvidas. Sejam escolares, técnicos, de ficção, recreio e lazer ou mesmo os de cheques (ainda se usam?), de reclamações ou daqueles mais íntimos onde guardamos as nossas memórias (os nossos diários). No Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor, que este sábado se comemora, conhecemos a relação que Bárbara, advogada e jurista, Miguel, livreiro, e João, programador cultural, têm com os livros. E cada um deles escolheu um título, numa “relação aberta” partilhada com os leitores.
Bárbara Raposo e os Códigos de Processo Penal
O livro salta à vista na bolsa que leva a tiracolo. “Não podia ser de outra forma, é ele que me acompanha todos os dias”. Lemos na lombada: Códigos de Processo Penal. Um “calhamaço”, como na gíria se vulgarizou apelidar, um manual com um sem número de páginas que se tornou presença constante (e obrigatória) na vida dela. “Não imagino um dia sem ele”.
Bárbara Raposo tem 26 anos, uma licenciatura em Criminologia e Direito, um mestrado prestes a terminar em Direito Judiciário e uma alteração legislativa que, “se tudo correr bem”, poderá ser realidade em breve – é esse o motivo do seu trabalho académico, que prefere, por agora, deixar em segredo.
É uma das frequentadoras mais assíduas da Biblioteca Pública Municipal, junto ao Jardim de São Lázaro, no Porto, local que frequenta diariamente para se dedicar a encontrar os fundamentos necessários para terminar o trabalho que tem em mãos.
Encontramo-nos com ela na porta da biblioteca, subimos a uma das salas de leitura e espantamo-nos com o volume de títulos que levanta no balcão. “São mais de 20, todos os dias, para pesquisa, leitura e investigação”, assume.
Bárbara passa as tardes entre livros. Entre leis, termos técnicos, publicações mais ou menos volumosas. No fundo, entre “calhamaços”. Todos os dias, “das 14h30 às 19h30”, podemos encontrá-la sentada em frente ao seu computador, no quase absoluto silêncio, mergulhada nesta realidade que lhe enforma os dias. “É o sítio onde procuro a bibliografia que preciso, o local onde me sinto confortável para estudar e trabalhar”, assume a jurista e advogada.
No local encontra o “ambiente sereno, calmo e sério” de que tanto gosta, sem os burburinhos e as distrações que acontecem em grande parte dos locais públicos. Como se este fosse o local ideal para a meditação no encontro com as letras.
“Sempre gostei de ler, desde muito nova. Comecei com os livros que a minha mãe tinha na biblioteca de casa. Lembro os da Isabel Allende. Mas li muitos livros de crime, sempre foi algo que me interessou. Hoje gosto de ler algo mais dedicado ao mindfulness, para acalmar a mente”, reconhece Bárbara.
Mas quando lhe pedimos um livro que seja parte fundamental da sua vida, não hesita em escolher: “O Código de Processo Penal”. Ri. Uma espécie de livro dos livros no mundo de Bárbara, numa realidade que não imagina desprovida de edições.
Miguel Carneiro e “O Meu Pé de Laranja Lima”
Aos seis anos, já organizava livros. “E sem saber ler”. Recorria à memória visual para os colocar de forma ordeira, reconhecendo o símbolo gráfico de cada editora. Na prateleira, ia colocando um a um. “Eu cresci aqui, na livraria”. A ver o pai a cuidar dos livros, acompanhando a evolução do mercado livreiro, “a organizar tudo na cave, a limpá-los minimamente”.
Miguel Carneiro tem 51 anos e é a geração mais recente da Livraria Moreira da Costa, nome com 120 anos (comemorados em 2022) que se dedica, na quase totalidade, à venda de livros usados, “das edições mais recentes às mais antigas”.
A casa teve já outra morada, mas está, desde 1949, na Rua de Avis. Para quem conhece não será novidade, mas para os distraídos parecerá estranho que, em poucos metros, caibam 30 mil livros – afinal, parecem ser apenas meia dúzia de prateleiras aquelas que se vislumbram da montra (e sim, este é o número de livros disponíveis neste local). “Mas há mais lá em baixo”.
Afinal, a cave é um dos (muitos) tesouros escondidos deste local, um conjunto de recantos com livros e livros e mais livros. “Foi aqui que comecei, aos 18 anos, a trabalhar a sério”, continua Miguel, “a fazer catalogação e a descobrir a paixão”, diz-nos, entre lombadas. “E não me foi imposto, foi um gosto meu, pelo livro e pela relação e amizade que se cria com os clientes”.
A vida deste livreiro confunde-se com os livros que lhe passaram pelas mãos. Com eles passou “bons momentos, relaxado” e aprendeu muito do que conhece. E hoje, o maior prazer que tem é saber que a história não termina, ultrapassando fronteiras.
“O livro tem sempre uma história por trás e com o turismo na cidade, que também frequenta o nosso espaço, sei que os livros que compram continuam a construir a história daquele objeto”, assume Miguel Carneiro. “Acho que, em breve, a frequência das livrarias de bairro vai voltar a aumentar, em linha com o que já acontece na Europa. Acima de tudo, sei que o gosto pelo livro nunca vai desaparecer”.
Há, no entanto, um livro que nunca lhe sairá das mãos: “’O Meu Pé de Laranja Lima’, de José Mauro de Vasconcelos”. “Li aos 16 anos e marcou para sempre a minha vida. É intemporal, mantém-se na memória como forma de estar e pensar. Foi essencial para mim, na forma de descobrir novos mundos e de os querer viver”, finaliza.
João Gesta e a “Poesia Toda” de Herberto Helder
O pai tinha uma fixação pelos clássicos de ficção científica (“estávamos nos anos 50, na altura dos livros do Isaac Asimov e daquela coleção, a “Argonauta”, diz-nos); a mãe era mais dos clássicos portugueses, “do Eça de Queirós e do Almeida Garrett, o que, confesso, não achava grande piada”. Perante uma biblioteca tão eclética, prefere recordar outras aventuras. “As do ‘Sandokan’, do Emilio Salgari, e as peripécias dos Cinco”.
João Gesta tem hoje 69 anos, os últimos 20 dedicados ao ciclo “Quintas de Poesia”, projeto que procurou trocar as voltas – ou acrescentar camadas – aos livros e às suas histórias, levando-as a palco e acrescentando-lhe novas vozes.
Mas já lá vamos. Antes paramos no Café Piolho, “ali nos anos de 1972”, altura em que ingressou na faculdade. “Foi aí que tudo mudou, conheci lá muitas pessoas, como o Manuel António Pina, que me impulsionaram a ler mais e começou, então, a minha aventura pela poesia”, acrescenta.
Desse tempo recorda as primeiras leituras de Herberto Helder (que ainda hoje o acompanha], António Ramos Rosa, Nuno Júdice, Ruy Belo, “alguma Sophia [de Mello Breyner Andresen]”. “Era uma época em que os poetas homens prevaleciam”, assume.
Eis que chega 1974, nova literatura e ideologia, novos interesses. “Nasce uma renovada perspetiva em mim, com os textos de Lenine, de Marx, de Rosa Luxemburgo e o meu grande amor, que ainda se mantém: Leon Trotsky”, revela Gesta. “Assumo que sou um trotskista e conheço a obra toda do autor, de trás para a frente”, sorri.
Longos anos desembocaram então nesse projeto que mudou a sua vida para sempre. “Tudo surgiu em 2001, com a Capital Europeia da Cultura. Entrei como programador em 2002, numa necessidade de criar outros recitais e tentar cruzar a poesia e a palavra com outras artes”, conta no foyer do Teatro Campo Alegre, local propositadamente escolhido por ser a casa da maioria das sessões mensais (sempre esgotadas, com filas de espera por desistentes em cada uma delas).
A ele se deve, atualmente, toda a programação dedicada à literatura efetuada pelo Teatro Municipal do Porto, desde as incontornáveis Quintas mensais até aos Cafés Literários e Lançamentos de Livros no Café Rivoli, sendo ainda parte da definição da programação da Feira do Livro do Porto.
Do tempo em que o mundo parou (ainda nos lembramos?), o também autor recorda a sua “tábua de salvação durante estes dois anos”. “Durante a pandemia, se não tivesse livros, não tinha morrido da doença, mas da nostalgia”, recorda. “Foram essenciais para combater a minha solidão, abriram janelas para viajar, à boleia dos nossos grandes poetas, dos nossos escritores e do nosso maior património, que é a língua”.
Neste dia, ainda na ressaca de um tempo que esperamos que não volte, olhará, mais uma vez, para um dos livros da sua vida. “A ‘Poesia Toda’, de Herberto Helder”. Diz-nos que, “gostando ou não de poesia, a forma como o autor escreve é uma outra dimensão. Ler um livro dele é ainda hoje como uma viagem psicotrópica, porque ninguém escreve como este autor”, revela João Gesta, em final de conversa.
“E deixe-me acrescentar um verso dele que, para mim, simboliza bem o seu trabalho: ‘o poema faz-se contra a carne e contra o tempo’. Acho que é mesmo isto, as gerações andam todas a tentar fintar o tempo nas suas obras”, acrescenta. É tempo de parar esse tempo por umas horas e deixarmos que os autores o vivam por nós – e nós com eles.
Texto: José Reis
Fotos: Guilherme Oliveira e João Coelho