O canto lírico não falta no Natal portuense. Este ano, a Ópera de Bolso assinala o seu reencontro com a cidade no renovado Mercado do Bolhão, no dia 17 de dezembro (sábado). Será um regresso emotivo, até porque o encerramento para obras deste emblemático espaço foi assinalado, precisamente, pela Ópera de Bolso. Quisemos conhecer um pouco mais deste projeto que há mais de seis anos leva o canto lírico e a “ópera portátil” aos locais mais inusitados e icónicos da cidade.
Deslocámo-nos às instalações do secular edifício do Orfeão Universitário do Porto, num domingo de chuva persistente e miudinha. Fomos no encalço do som do piano do maestro António Sérgio que já se fazia ouvir nos corredores do edifício. Subimos as escadas e, mesmo à entrada da sala de coro, deparámo-nos com uma fotografia, testemunha do legado histórico e da já longa tradição do canto oral do Orfeão. São, afinal, 110 anos de um grupo artístico que nasceu um ano após a criação da Universidade do Porto e que hoje continua a ser uma marca inconfundível na Academia e na cidade.
Na sala de ensaios já estavam em aquecimento de vozes a soprano Liliana Nogueira, a mezzo soprano Maria João Gomes e o tenor Manuel Soares, sob a batuta ‘invisível’ do maestro e mentor do projeto Ópera de Bolso. Job Tomé, barítono, junta-se minutos depois. Entra timidamente na sala. Com a voz grave e aveludada, denuncia estar constipado. Breves segundos de silêncio. “É leve, nada de grave!”, avisa. Os risos soltam-se.
Nos antigos bancos de madeira escura e gasta, já repousam algumas pautas avulsas, os casacos, os cachecóis e os guarda-chuvas. Os intervenientes começam a dispersar, as mãos serpenteiam no ar compassadas com alguns exercícios vocais que enchem a sala. E, de repente, o dia de chuva fez-se mais ameno e quente ao som dos primeiros acordes, gravados, de “Feliz Navidad” de José Feliciano, lançados pelo sistema do técnico de som, Tiago Brilhante, sempre atento à cadência e aos timbres de cada elemento.
Desafiámos o maestro António Sérgio a explicar-nos a génese da Ópera de Bolso para perceber o que afinal existe de tão peculiar e especial nesta relação entre o público e o projeto.
“De uma forma rápida e com a cor sonora de uma grande presença orquestral, num curto espaço de tempo, estamos preparados para dar um concerto nos sítios mais inusitados da cidade”, explica-nos. “Fazemos as vozes, ao vivo, mas com backing tracks instrumentais, permitindo que o brilhantismo de um excerto de, por exemplo, “La Traviatta”, de Giuseppe Verdi [começa a tocar a peça ao piano] apareça com toda a panóplia de cores que uma orquestra oferece”. É impossível levar uma orquestra de dezenas de músicos para um espaço vivo e em constante movimento no Mercado do Bolhão, no topo da Torre dos Clérigos ou noutro espaço emblemático da cidade. A Ópera de Bolso usa apenas a parte instrumental do reportório. Cabe aos cantores líricos “interagirem com as vozes e as emoções do público”.
O público, esse, já há muito que (con)vive com este projeto musical, desde que, há mais de seis anos, a Câmara do Porto desafiou o maestro António Sérgio, atual regente do Orfeão Universitário do Porto, a criar este projeto de ‘ópera portátil’. Desde então “foram muitos os momentos especiais”, confessa, enumerando alguns: “recordo os concertos no âmbito do Porto Cidade das Camélias; na Feira do Livro, quando fomos desafiados por altura do aniversário dos Descobrimentos portugueses, a interpretar excertos da Ópera ‘Africaine’ de Giacomo Meyerber”.
A interação com as pessoas é das maiores recompensas e são vários os momentos de partilha como o que aconteceu no ciclo de concertos de "Natal à Porta". “Demos um concerto de ópera no varandim da Torre dos Clérigos e, às tantas, um elétrico passa. A cantora interrompe a ária e diz – ‘abram alas que o elétrico vai passar’. As pessoas afastam-se, o elétrico passa e, poucos segundos depois, retoma a ária. Há apontamentos assim … inesperados e com humor”, revela-nos.
Maria João Gomes, cantora lírica assídua no coro da Casa da Música, colabora na Ópera de Bolso desde o início. Reconhece que o que mais gosta nesta iniciativa “são precisamente os concertos de Natal. Como acontecem na rua ou em espaços abertos, há uma interação muito própria com o público”, testemunha. “As pessoas passam e muitas delas desabafam que a ópera não é para elas, associam-na àquelas senhoras e senhores fortes, aos gritos, mas depois acabam por ficar para ver, ouvir e cantar connosco. Acabamos os concertos com quatro vezes mais pessoas do que quando iniciamos”, remata.
A Ópera de Bolso, além de ser um projeto artístico e colaborativo, é também uma formação nutrida pela amizade. E este é, porventura, um dos grandes ingredientes para o seu sucesso até porque a grande maioria abraça o projeto desde o início. É o caso de Manuel Soares, tenor com grande experiência no canto teatral. Colabora há muito com o maestro António Sérgio, e no caso específico deste projeto, diz tratar-se de uma “experiência enriquecedora, o maestro dá-nos a hipótese de sermos nós mesmos e interagimos com uma equipa muito coesa”. No último evento antes do encerramento para obras do Mercado do Bolhão, remete-nos para o ambiente vivido. “Naquele concerto, os comerciantes acabaram a dançar e cantar connosco ópera e música popular. Estavam extasiados. Parecia que lhes estava no sangue e é incrível constatar que, afinal, são melómanos interiormente”, remata com uma risada farta.
Um reportório eclético e popular
A formação não é sempre a mesma. “Os concertos complementam-se e não há repetição das canções cantadas e dos mesmos ambientes, esforçamo-nos por equilibrar as vozes. Tentamos que essa diversidade de vozes e cores esteja sempre representada”, explica-nos o maestro António Sérgio.
O concerto no Mercado do Bolhão, no dia 17 de dezembro, às 17 horas, será um regresso esperado em plena época festiva. “Vamos ter canções de Natal para toda a gente cantar, algumas árias de ópera pura para o público se deleitar e apreciar a técnica com a forma de cantar, mas calibrando sempre com canções de muito ânimo e presença”, revela-nos.
O reportório será pontuado por canções tipicamente natalícias como “Feliz Navidad” de Jose Feliciano, “Let it Snow” de Jule Styne, os tradicionais “Deck the Hall” e “We Wish You Merry Christmas”, mas também clássicos como “Funiculi Funiculà” de Giuseppe Turco, “O Sole Mio” de Eduardo di Cápua, “Nella Fantasia” de Ennio Morricone, “Quando m’en vo” e “O mio Babbino Caro” de Puccini, entre outras árias.
Concerto Ópera de Bolso
Mercado do Bolhão
17 de dezembro às 17h00
Cantores: Liliana Nogueira, soprano; Raquel Fernandes, soprano; Manuel Soares, tenor
Técnico de Som: Tiago Brilhante
Direção Artística: Maestro António Sérgio
Texto: Sara Oliveira
Fotos: Andreia Merca e Guilherme Oliveira