18/04/2024

Num tempo em que os miúdos crescem com o objetivo de serem as próximas estrelas dentro de campo e ganharem fortunas que ostentam, depois, nas televisões e revistas, muitas vezes é esquecido o papel de quem faz deles promissoras figuras amadas pelo mundo inteiro. Os treinadores são fundamentais para alimentar o sonho. São eles que, com as palavras certas, conseguem levar longe um atleta e fazê-lo brilhar. A Associação de Futebol do Porto tem a decorrer dois cursos de treinadores para diferentes níveis. No final de mais um dia, assistimos a uma dessas aulas – e ouvimos falar de Luís Castro, de Pep Guardiola, do incontornável José “Special One” Mourinho e do treinador-sensação-do-momento Rúben Amorim.

 

Com a ingenuidade que só uma paixão verdadeira coloca na voz e a certeza de quem sabe o que é realmente importante, Ivo não tem dúvidas: para se ser um bom treinador “é preciso ser um bom homem”. E para se ser um “bom homem”, acrescenta, é preciso “saber ouvir, respeitar, saber liderar, ser sempre sincero e manter a palavra dada”. Verdades como estas, de senso comum, são tão óbvias quanto raras. Essa ingenuidade que a voz de Ivo transporta é a de alguém que sabe do que fala, que coloca todos os dias os pés no relvado e de quem já viu muitos a ficarem pelo caminho.

 

Aos 35 anos, Ivo Passos tem de viajar longe, recuar quase 30 para contar qual o momento em que a memória o transporta para o primeiro toque na bola. Tinha 7 ou 8 anos e tudo começou em casa, numa tradição paterna com direito a jogos do Candoso todas as semanas - o pai esteve ligado ao clube durante muitos anos. Naturalmente, a bola saltou da cabeça do pai para os pés do filho. Treinou a nível amador, ainda teve uma experiência na segunda divisão, “na equipa do Infesta”, mas a estabilidade desejada não chegou.

 

 

Mas tudo se renova – e a motivação também. Decidiu seguir a formação de atletas, é hoje adjunto da equipa sénior do Castêlo da Maia e assume-o com o mesmo orgulho de quem treina um campeão mundial. Porque, para além de ser um “bom homem”, Ivo tem essa capacidade de liderança, “de ser capaz de falar para eles de igual para igual, olhos nos olhos”, com o respeito que lhe merecem. Tal como José Mourinho, diz. “Acho que ele é muito avançado naquilo que faz. É muito sincero, diz as coisas que tem a dizer, não anda com rodeios. E isso é importante: ser direto e ouvir a opinião”, resume.

 

Formação de treinadores com todas as idades

 

Ivo é um dos 30 alunos do escalão mais alto que a Associação de Futebol do Porto (AFP) pode, atualmente, ministrar na formação de treinadores: o Grau 2.

 

Sérgio Ribeiro é ex-jogador de futebol e, desde 2007, coordena a formação na AFP, com especial incidência nesta área. É o formador da turma e… a cara dele faz-nos lembrar alguém: é uma versão nacional do francês Vincent Lindon, mais novo, mais moreno e mais aguerrido na forma de falar. Do cinema talvez nada saiba, mas de futebol sabe muito, isso é garantido.

 

 

Desde 2007 que a AFP tem apostado nestes cursos como forma de potenciar os conhecimentos de futebol em diferentes gerações, trocar experiências e partilhar essas aprendizagens que só o campo lhes consegue fornecer.

 

O que temos encontrado tem sido muito interessante, são turmas muito heterogéneas, com jogadores que são ainda profissionais, agentes desportivos, pessoas que estão na formação e até outros que voltaram agora à formação”, revela Sérgio.

 

É o caso de Eduardo Silva que, aos 42 anos, e depois de ter frequentado o Grau 1 em 2018, regressa agora “a casa” para mais um passo. “Porque sempre foi uma paixão minha e [esta aprendizagem] permite-nos um compromisso e uma educação com os atletas que os marcam para a vida toda”, revela.

 

 

A Eduardo aconteceu-lhe isso, “graças a deus”, acrescenta: teve a oportunidade de se cruzar com um treinador “que permitiu que crescesse enquanto pessoa, na relação com o próximo”. Hoje faz parte da equipa técnica do Futebol Clube Infesta, mas a ideia é continuar a evoluir. “Para o Grau 3 ou ainda mais”. Porque aqui aprende que as relações humanas são o mais importante e que só nessa entreajuda se consegue alcançar um melhor desempenho.

 

Tal como Luís Castro, que treina do outro lado do mundo e que admira, “pelo excelente ser humano que é, por ter feito o seu caminho e nunca ter pisado ninguém, por ter uma ideologia e filosofia de vida”. Um “mestre”, nas palavras de Eduardo.

 

Sonhar com “banda larga” para ser um exemplo em campo

 

Manter 30 alunos em silêncio quando o assunto é futebol é façanha impossível. Há sempre uma pergunta que surge, há sempre uma opinião que difere, há sempre “clubites” que não conseguem ficar à porta, mas neste ambiente de boa disposição quase tudo é permitido. Sérgio é a voz de comando, os tempos de jogador, a ouvir treinadores, ensinaram-lhe a saber liderar, a ver os outros e a ser ele, também, o timoneiro de uma equipa.

 

Quando hoje passa para o lado de lá, da partilha o conhecimento, não tem dúvidas que um treinador pode fazer a diferença “pela paixão que deposita no treino, pela forma como encara o jogo e o exercício, criando uma equipa à sua semelhança, na forma técnico-tática”.

 

 

Lamenta que, atualmente, os treinadores de formação não sejam devidamente valorizados, “pois são eles os responsáveis pelos primeiros passos de muitos miúdos no desporto”. Porque a história começa sempre pelo princípio e nunca pelo fim (neste caso, nunca pelo profissionalismo imediato).

 

Nesta matéria, Rui Marques tem uma palavra a dizer. Foi guarda-redes profissional durante 13 anos e, quando decidiu deixar as redes, passou para o lado do treino. Aqui, procura o conhecimento porque, como tudo na vida, o “futebol está sempre em modernização e há que acompanhar as novas gerações”. Porque, ao contrário do tempo dele, em que se seguiam ídolos a nível planetário, hoje criam-se estrelas de um dia para o outro e o futuro parece ter um prazo de validade muito curto.

 

“Mas eu sou sempre sincero com os meus atletas, somos fazedores de sonhos mas temos, acima de tudo, de ser verdadeiros”. Apesar de tudo, e, como o sonho comanda a vida, “em banda larga”, diz que todos devem continuar a sonhar.

 

 

Como ele ainda hoje sonha em continuar a formação mais avançada de guarda-redes, na Federação Portuguesa de Futebol, e concretizar o objetivo de levar mais adiante a Academia que tem. Ser profissional é algo que já não lhe interessa, aos 53 anos quer apenas continuar a ver surgir os melhores atletas possíveis com os conhecimentos que consegue passar. E, quem sabe, criar novos Iñakis Cañas (treinador de guarda-redes do Arsenal) ou, quem sabe, um novo Pep Guardiola (treinador principal do Manchester City) – técnicos que muito aprecia pela forma como incentiva as suas equipas e as respeitam, em discursos motivacionais no balneário.

 

Desporto que se sente e mexe com as pessoas

 

Durante a aula, há exercícios teóricos partilhados a pares, discussões que são tidas em conjunto, há opiniões mais ou menos polémicas, mas todos têm direito a falar quando querem. O futebol, como a vida, não é uma ciência exata, vive das emoções que passam de dentro para fora do campo e da forma visceral como uma equipa se torna parte da família.

 

Sérgio Ribeiro tem muito respeito por todos estes alunos, pela força de vontade e empenho. “Perdem tempo de lazer e com a família para cumprir esta meta. É um investimento pessoal para um maior proveito”, diz. A maior dificuldade continua a ser a parte prática, já que os clubes não têm a disponibilidade desejável para os acolher nos tempos pretendidos. Mas sabe que a nova Academia da Associação de Futebol do Porto vai colmatar essa lacuna. “Um dia, quando ela estiver pronta”, ri-se, sem compromisso.

 

Talvez daqui a dez anos a coisa já esteja mais que pronta, e é daqui a dez anos que Nuno Dias, outro dos formandos, se imagina a treinar num clube profissional. Não quer arriscar a divisão. Nem qual o campeonato.

 

 

Aos 26 anos, é dos mais novos do grupo, mas com a lição bem estudada: começou por jogar desde novo, “mas sem grande jeito”, e aos 18 anos decidiu-se pela formação. Passou pelo Avintes, por diferentes escalões, e atualmente é treinador-adjunto do União Nogueirense da Maia, no escalão de sub-18. Falar com jovens pouco mais novos que ele é uma “mais-valia”, porque a linguagem acaba por ser semelhante.

 

Engenheiro químico de profissão e paixão, o coração de Nuno divide-se entre os laboratórios e os campos de futebol. “[O desporto] é uma coisa que mexe com uma pessoa, é uma responsabilidade. É algo que não se explica, que se sente”. Mas o futebol profissional é o objetivo de vida, num tempo em que vê ex-jogadores a chegarem a clubes de topo cada vez mais cedo.

 

 

É o caso de Rúben Amorim, que tem um mercado cada vez maior e, até, se antecipa o salto para a liga mais competitiva mundo: a Liga inglesa. Nuno admira-o. “Pela forma como está no futebol, pela postura e comunicação cuidada. É incrível o que já conquistou na curta carreira de treinador, sem passar por cima de ninguém”, destaca Nuno.

 

Também ele augura chegar a esse patamar. De ganhar campeonatos, de analisar lances, de avaliar jogos de futebol. Com o mesmo respeito com que Rúben o faz. Com a mesma calma com que sabe que as coisas têm o seu tempo para acontecer. Agora na Maia, amanhã em Liverpool, quem sabe.

 

Texto: José Reis

Fotos: Nuno Miguel Coelho

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