A Foz (e todo o Porto) reconhecem-no como uma figura da cidade. Ao longo de mais de 70 anos, os quilómetros de praias do Porto e Matosinhos eram calcorreados por um homem que, de chapéu de marinheiro, contribuía para o aumento do índice de felicidade dos veraneantes. Hoje, e após a sua morte, MrKas quis homenageá-lo. Pelas memórias que deixou e pela cidade que nunca o esquecerá. O mural de tributo a José Alves (o Sr. Batatinha) faz agora parte do Programa de Arte Urbana do Porto.
Há menos de um ano, numa tarde quente de setembro, o Sr. José (Alves) quis ver como os outros o viam. Ou melhor, quis ver como era, na realidade. Não em fotografia, mas em pintura. Foi no Quartel do Monte Pedral, na mostra Baluarte, num mural de dimensões consideráveis com vista para a Rua da Constituição.
MrKas, o artista que o pintou numa das fachadas, quis fazer uma homenagem ao homem que conhece desde sempre, dos tempos em que ia à praia com a mãe, lhe comprava as batatas fritas que só ali sabiam daquela forma, que o chamava e logo se escondia nas saias da mãe, num jogo ao estilo “gato e rato”. José procurava a voz por entre a multidão, Nelson (mais tarde Mr. Kas) ria-se como um perdido, numa brincadeira que tinha mais de carinhosa do que maliciosa.
Naquela tarde de setembro, José Alves ficou ali, perante o mural, durante horas. Num jogo tridimensional, onde o humano e o figurado se encontram, foi cumprimentando quem passava, respondendo à curiosidade de quem o via, posando para as fotografias que lhe solicitavam. Hoje, Mr. Kas não tem dúvidas: um homem que vivia para o trabalho, que raramente aceitava estar presente em eventos sociais, acedeu ao convite porque “sentia que a vida estava a chegar ao fim”. Como se fosse o último grande momento de contacto com a cidade, com as diferentes gerações que viviam o verão na Foz, habituadas à presença dele.
José Alves, o Sr. Batatinha, morreu em março último, aos 82 anos. Desse tempo de vida, 72 anos foram passados a trabalhar nas praias da Foz (e Matosinhos). A vender, a fazer amigos, a transportar carinho, alegria. A fazer sorrir miúdos e graúdos, avós e netos, pais e filhos.
MrKas foi um desses miúdos que não se lembram da Foz sem a icónica personagem com chapéu de marinheiro e um brilho único no olhar. “Sempre o vi como uma pessoa bem-disposta, carinhosa, alegre, respeitadora, com a essência da cidade do Porto”, recorda.
Dessas memórias resgatou-o para o presente, com uma homenagem (feita ainda em vida) transversal a toda a cidade. “Acho que todos se lembram daquele homem de cabelo branco, do chapéu, da roupa que usava todos os dias…”, refere.
O mesmo olhar, o mesmo sorriso, os mesmos traços
Junto ao Mercado da Foz, a escassos metros das praias onde deixou marca(s), José Alves continuará a viver. Numa encomenda da Câmara do Porto, no âmbito do Programa de Arte Urbana da cidade, Mr. Kas completa o trabalho iniciado em 2023, no Monte Pedral. Pintou um mural onde o Sr. Batatinha irá viver para sempre (e não só ali, mas também nas redes sociais onde muitos dos curiosos perpetuarão a sua obra).
A partir de uma fotografia onde todas as marcas do tempo têm dezenas de histórias guardadas, criou uma composição visual onde o carisma da personagem convive com detalhes dos pacotes que vendia e as características de um postal antigo, queimado pelo tempo, como a tez de José Alves.
“Para lhe acrescentar ainda mais realismo, utilizei os tons azul, numa relação com as cores do céu e o mar, que ele tão bem conhecia”, acrescenta o artista.
Durante os quatro dias que duraram a intervenção, eram muitos aqueles que paravam, comentavam, fazia perguntas, partilhavam recordações, registavam o processo. “E 99% do feedback que tive foi positivo, porque o admiravam e respeitavam”, revela.
Os que agora passam, quando o trabalho está finalizado, não ficam indiferentes. Param, olham, reconhecem o olhar, a expressão, os traços. Viajam dentro dessas memórias sem tempo e eternizam uma figura que jamais será esquecida.
Porque, por muito que se continue a vender naquelas praias, nunca mais se venderá daquela forma. Para muitas gerações, José Alves não era somente um vendedor, era um criador de sonhos, alimentados a meio da tarde, quando, ao longe, vislumbrássemos aquele vulto a apregoar as maravilhas das suas batatas.
“Quer queiramos quer não, a Foz nunca mais será a mesma sem ele”, finaliza MrKas.
Texto: José Reis
Fotos: Rui Meireles e Andreia Merca