19/09/2023

Apesar de o terem tentado convencer, José Alves não queria ir ver o seu rosto agigantado numa parede. Dizia que não conseguia sair das praias onde há 70 anos vende batatas fritas. Nem quando a família lá foi – depois de alertada por alguém que passara na Rua de Egas Moniz e vira a figura do homem a olhar lá do alto – mudou de ideias. Mas no sábado, dia da inauguração da Baluarte, o “senhor José” lá apareceu, com o seu icónico chapéu de marinheiro. 

 

Quem o visse não acreditaria nas reticências da visita: o octogenário ficou toda a tarde junto à obra em que está retratado. De mãos nos bolsos, viu dezenas de visitantes a chegar e a partir, posou com muitos para fotografias e respondeu a perguntas sobre a “sua” pintura, a sua cidade e a vida, a sua e a de todos.  

 

“Este mural é dedicado a uma personalidade da cidade do Porto e representa as minhas memórias de infância e as de muitos portuenses”, explica MrKas, um dos 14 criadores com trabalhos na exposição de arte urbana que pode ser vista no Quartel de Monte Pedral nos fins de semana até 1 de outubro.

 

 

Mas se, nas enormes paredes intervencionadas, encontramos a cidade do Porto, representada pelas suas gentes ou pelas paisagens que envolvem a cidade (pintadas por Mariana PTKS), vemos também marcas de outros lugares e de outros tempos. Facio evoca a ancestralidade com o seu pincel minucioso, enquanto Costah usa a interatividade para refletir a passagem dos dias. Hazul navega de barca para o desconhecido, Oaktree esconde entidades misteriosas e RA.SO.AL mostra que o que parece nem sempre é. Há muito para descobrir. 

 

Algumas portas – mas não todas – que ajudam a desvendar as obras são abertas nas visitas guiadas em que João Kendall aborda o percurso de cada autor e o enquadra no movimento de arte urbana portuense. O itinerário (que na inauguração chegou a juntar mais de 50 pessoas) repete-se em todos os dias da exposição, sempre às 11h00 e às 17h00, sem necessidade de inscrição. 

 

 

A mulher como tema e reivindicação no mundo da arte 


Também a crítica social se vê agora nas paredes do quartel. Se Arisca põe o Direito e a Justiça no centro do olhar, Mura denuncia a nossa cegueira em relação ao mundo vegetal. São duas das seis mulheres que ao início da tarde de sábado se reuniram para falar sobre “Arte no Feminino”, na primeira das conversas incluídas no programa da Baluarte.  

 

“É bonito um evento que celebra a efemeridade”, destacou a docente, gestora cultural e curadora Helena Mendes Pereira perante uma plateia bem composta, antes de percorrer a história do movimento urbano no universo da Arte e o papel crescente da mulher nas suas manifestações.  

 

 

As participantes partilharam experiências de discriminação de género no setor e propuseram visões do caminho a traçar rumo à igualdade. Pelo meio, iam refletindo sobre o contexto em que atuam e sobre o que as trouxe até aqui. Rafi die Erste, que também expõe na mostra e é autora de uma tese de mestrado sobre a alienação na cidade contemporânea através do grafiti, referiu-se à arte urbana como “uma espécie de esperanto para os jovens".  

 

Foi essa “língua própria” que atraiu Mariana PTKS, também conhecida como Mariana “Patacas”, quando em 2014 “estava a ver o que ia fazer” depois de terminar os estudos superiores. O Street Art AXA, um evento organizado pela empresa municipal Ágora (então chamada PortoLazer), permitiu-lhe ver as intervenções de cerca de 20 artistas num edifício localizado na Avenida dos Aliados, o que lhe deu “um empurrãozinho na direção da arte urbana”. “Nunca imaginei que passados dez anos estaria num evento semelhante como artista convidada”.  

 

No final, Marta Bernardes, responsável pelos programas de mediação e educação do Museu do Porto, que moderou a sessão, congratulou-se por “um local que foi feito para a guerra” ter sido ocupado pelas cores de toda esta expressão artística. 

 

 

Gente de todas as idades e proveniências 

Pacífico e heterógeneo era o exército de braços no ar que durante o entardecer se ia espalhando pelos corredores do Quartel de Monte Pedral, imortalizando nos seus telemóveis as obras efémeras da exposição (o espaço será demolido no futuro). Fotografias panorâmicas dos corredores e de pormenores minúsculos, planos picados para o reflexo da tinta nas poças de água, vídeos para stories sem limitação geográfica e poses em frente aos edifícios certificavam que muitas dezenas de pessoas passavam por ali. 

 

 

No final do percurso, muitos iam-se acumulando na zona de restauração, com sandes de panado e cerveja a acompanhar os sons urbanos servidos pelo DJ Earl. Até mesmo o grupo de cinquentões norte-americanos, que demorava uma eternidade em cada paragem, acabou por se juntar. Entre conversas sérias de adultos, dois miúdos argentinos apontavam para o desenho de uma figura nua e exclamavam: “Mira, un culo!”.  

 

Se é certo que também se viu gente de bengala, o grande número de crianças, levados em carrinhos ou a correr pelo próprio pé, foi mesmo um dos destaques da afluência. Uma delas reclamava porque queria participar na oficina de pintura com spray, enquanto a mãe lhe explicava que a atividade é só no dia 1 de outubro. Outra era aplaudida por uma pequena multidão depois de lançar com sucesso uma pedra para a obra de Godmess, uma instalação criada para ser (literalmente) partida pelo público.  

 

Feita de pequenos e graúdos, a multiculturalidade da Invicta, retratada na obra que MrDheo concebeu para a Baluarte, podia ser entendida ao ver quem circulava no quartel. A “repetição frenética da urbe, numa visão que muda consoante a hora do dia”, mote da criação de mynameisnotSem, também. Nos próximos dois fins de semana não deve ser diferente. 

 

 

Texto: Francisco Ferreira
Fotos: Andreia Merca

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