09/05/2024

Nas histórias que fazem a história de 10 anos do Cultura em Expansão, são vários os momentos que a memória não esquece. Principalmente em quem participa em espetáculos, experimenta pela primeira vez um palco ou se sente acolhido num projeto que, assume, nunca imaginaria poder acontecer. Nesta segunda reportagem de um ciclo de dez artigos, conhecemos hoje dois desses casos: Maria do Céu Vinha e Amélia Couto. Ambas com 75 anos, ambas com aniversário marcado para novembro, ambas atrizes por umas horas. Da vida rotineira de Campanhã para a surpresa de uma plateia, há momentos que não se esquecem e que elas mantêm, por entre  memórias mais ou menos felizes.

 

Nunca se é velho para amar. Nunca se é velho para experimentar. Nunca se é velho para mudar. Nunca se é velho demais para quase nada. Que o diga Amélia Couto, hoje com 75 anos, que decidiu mudar de vida aos 60, de forma radical. “Comecei uma nova vida”, admite.

 

Franzina, cabelo branco cortado pela orelha e voz leve, lenta, carrega em cada pausa do discurso uma réstia de sofrimento que o presente não apaga. O passado foi duro, um casamento infeliz, vários anos a servir os outros para, quando chegava a casa, não ser ela a pessoa mais importante. Ainda hoje se lembra, as memórias não se apagam, mas os filhos (sempre os filhos!) uniram-se nessa dor e decidiram que era hora de começar de novo. Deixar tudo para trás e começar do zero. Literalmente, com zero.

 

 

No passado ficaram os móveis da casa alugada, os objetos que foi conseguindo juntar, as (más) recordações que as paredes absorveram, de tão diárias que eram. Aos 52 anos ficou viúva, de um marido com “vícios”, aos 57 “meteu os papéis” para a reforma, aos 59 anos chegou a tão ambicionada aposentação. Finalmente tinha chegado a hora de tomar as rédeas da sua vida. De não se deixar submeter a uma violência psicológica que hoje nos conta sem receios, com o vagar que todas as histórias devem ter.

 

“Não foi uma vida boa, foi uma vida de grande sofrimento, mas tenho dois filhos que são os meus maiores amigos”. Um é jornalista, a outra psicóloga. Um vive perto, a outra mais longe, mas “rapidamente me meto num avião e vou vê-la”, aos Países Baixos.

 

 

É esta coragem, que nasceu aos 60, que a levou a estar em Moçambique, a praticar voluntariado onde nada existia, onde o afeto era a maior riqueza daquela sociedade. “Foi onde percebi que nos devemos desapegar de tudo e prestar atenção ao que realmente interessa”. O voluntariado começou cedo, o trabalho como enfermeira ajudou a fomentar o gosto por ajudar, “foram mais de 30 anos”.

 

Quando a vida deu a volta, foi como missionária para o exterior. Voltou a Portugal para ser a ajuda dos doentes que (infelizmente ainda) encontram no IPO a casa de todos os dias. Apoia pessoas com necessidades especiais numa APPACDM. Tudo pelo outro. Foi a forma que encontrou de combater a solidão de uma decisão radical. “Quando a vida é dura, a família também se separa um bocadinho e não existe o convívio habitual. As pessoas que estavam à nossa volta afastam-se, precisamente quando mais precisamos”. E foi a partir desse momento em que Amélia percebeu que, “com esta idade, é difícil fazer amigos”, que uma luz se abriu num horizonte que prometia ser vago, difuso.

 

Espetáculo feito com as avós de Campanhã

 

Amélia Couto foi desafiada pelos colegas da APPACDM a participar num casting para uma companhia de teatro. “Não queria, tinha vergonha. Mas desafiaram-me tanto que acabei por ir. Porque nunca fugi a um desafio”. Foi a primeira classificada desse concurso. E é aqui que começa a aventura na companhia Era uma Vez Teatro, que a levou a conhecer mais pessoas do meio e a aceitar um convite para participar no projeto “Para Vós – Um Solo Coral sobre o Lugar onde Vivem as Memórias”, da encenadora Cláudia Andrade, promovido e mediado pelo Visões Úteis, apresentado no âmbito do Cultura em Expansão, em 2022.

 

 

A ideia era aparentemente simples: juntar em palco oito avós de Campanhã, com as suas memórias, para um espetáculo que evoca esse lugar desconhecido. Todas oriundas de associações da freguesia, com um papel ativo na promoção da solidariedade.

 

Todas, à exceção de uma: Maria do Céu Vinha. Aos 74, subiu ao palco pela primeira vez quase por acaso. Vive paredes meias com a Associação Nun’Alvares, em Campanhã, local onde o trabalho foi apresentado, e ainda se lembra de ver “um rapazinho muito querido” a colocar um painel na entrada do local.

 

 

“Estava a deitar o lixo ali perto e disse-lhe: ‘olhe, menino, ainda me vai dizer quem lhe deu autorização para pôr isso aí’. Estava na brincadeira, claro”, diz, entre uma gargalhada. “Ele perguntou quem eu era e eu: ‘olhe, eu sou daqui vivo mesmo ao lado, tenho aqui uma lojinha de usados’”. Fez o convite para conhecer o seu recanto. Ele foi.

 

Estava dado ali o clique para o momento que se seguiu. “Contou-me que andavam a preparar um espetáculo com avós e que andavam à procura por ali, em Campanhã. E eu, que não tenho papas na língua, respondi logo: “olhe, eu já sou avó cinco vezes’”, ri.

 

De Angola ao Porto, sem medos

 

Numa espécie de reverso de uma mesma medalha, e em contraponto a Amélia, Maria do Céu tem a garra de uma mulher do Porto, a voz de uma mãe guerreira, o espírito livre de uma mulher que passou dificuldades, mas soube superá-las. É retornada de Angola, manteve uma mercearia aberta anos a fio naquele local perdido da freguesia e criou ligações fortes com a população. Lá atrás, saiu da escola aos dez anos, passou a guardar ovelhas e vacas e cresceu a pulso, como só os antigos sabem fazer. Com esforço, mas sempre com um sorriso no rosto.

 

Hoje, aos 75 anos, já sem a mercearia, já sem ter as portas abertas para acolher quem quer que por lá passe, ocupa dias no quintal de casa, cultivando tudo o que leva a mesa. Faz as coisas ao seu ritmo, sozinha, o marido apoia-a no que pode, mas a prótese na anca não lhe permite ajudar mais. É muitas vezes Maria do Céu que o obriga a sair de casa, já que ele prefere ficar mais por casa. Desconfia de tudo o que não conhece.

 

 

Maria do Céu lembra até o dia em que, entusiasmada, contou que ia fazer teatro. Friamente, disse que não era para ela. “Ele é assim, não me apoia muito nestas coisas”, lamenta.

 

Mas não desistiu. Juntou-se ao grupo das avós de Campanhã que subiu ao palco há dois anos para serem elas mesmas. Não há personagens fictícias, há pessoas que falam de si mesmas, que vestem a pele delas próprias. O processo, admite, até foi fácil. “Mas enganava-me muito [risos]. Até nos espetáculos nos enganamos, mas as pessoas percebiam. E sei que me enganei muitas vezes”, ri Maria do Céu.

 

A experiência que fica para a vida

 

Quando subiram ao palco, a plateia estava cheia. De familiares e amigos para verem as verdadeiras estrelas da companhia. Os filhos, os maridos, os netos, os vizinhos, todos de olhos postos no palco. “Nem reparei quem cá estava. Quando estamos em cima do palco tentamos nem olhar para eles”. Porque centrar-se ali, naquele momento, em quem se ama é perder-se num turbilhão de emoções, entre o orgulho, a alegria e a emoção.

 

O projeto seguiu no ano seguinte para Lisboa, com apresentação para um público diferente. Amélia adorou a experiência, “na cidade grande”, Maria do Céu nem tanto. Está habituada à pacatez de Campanhã e lá “era tudo muito confuso, tinha muita gente”.

 

 

Mas não se esquecem da forma como foram tratadas, como verdadeiras “divas do teatro”, “com autocarro à nossa espera, com almoço, jantar, pequeno-almoço, tudo preparado”, conta. Tudo para elas, tudo a pensar nelas. Elas, que sempre pensaram primeiro nos outros, estavam finalmente a ser retribuídas por todo o bem que fizeram. Ouviram palmas, agradeceram os elogios, prometeram voltar, “um dia”.

 

As avós de Campanhã sabem que só assim vale a pena viver, experimentando o que não é habitual. Saindo da zona de conforto e descobrindo novos horizontes. Porque o vizinho do lado é, quase sempre, muito mais que o vizinho do lado.

 

 

No final, ficou a alegria de ter participado numa experiência que levam para a vida, “a de fazer brilhar a estrela que há em nós e a criança ressurgir”. “Acordou a criança que estava adormecida e esquecida em mim”, admite Amélia, com a emoção nas palavras.

 

Maria do Céu não entende bem essa história da criança “interior” a que a amiga se refere. Mas, perante tanta convicção, não tem coragem sequer de a questionar.

 

Texto: José Reis

Fotos: Rui Meireles

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