05/04/2022

Álvaro Domingues, geógrafo, e Ivo Poças Martins, arquiteto, são os autores responsáveis pela exposição “Mouzinho: Da Ribeira ao Aeroporto”, uma viagem por uma nova atualidade patente na Casa do Infante até setembro, com curadoria do Museu da Cidade. Uma entrevista que aborda o passado, o presente e o futuro de uma das artérias mais importantes da cidade, numa reflexão que ultrapassa as fronteiras (fictícias) de uma geografia em constante mudança. 


 

Antes de olharmos algumas das questões inerentes a esta exposição, vamos falar genericamente desta mostra. Em que consiste esta recolha e quais as premissas que estiveram em cima da mesa? 

 

Álvaro Domingues (AD): Vamos para ali, para junto do mapa, que é melhor [aponta para o cartaz da entrada, enquanto caminha]. Começou por um convite [feito pelo Museu da Cidade] para organizar uma exposição que, na altura, se pensava ser sobre a Rua Mouzinho [da Silveira]. A verdade é que nem eu nem o Ivo [Poças Martins] somos historiadores e, como estávamos a pensar noutras coisas [risos], fizemos uma contraproposta. Uma vez que a Mouzinho foi construída numa altura de mudanças muito rápidas e, ao mesmo tempo, muito fortes, que mudaram a geografia do Porto, propusemos que o desafio seria encontrar hoje um eixo que, não à escala do Porto, mas à escala do Grande Porto, tivesse a mesma capacidade narrativa sobre o que é, no fim de contas, a condição urbana. E daí o título, não é? Ser “Mouzinho: Da Ribeira ao Aeroporto”. [Pausa] 

 

A argumentação era que a [Rua] Mouzinho, a partir do início dos anos 70 do século XIX, apanha um período histórico onde tudo estava a acontecer: a Ponte Ferroviária que traz o comboio para Campanhã e que depois obriga a ripar duas linhas, uma para Alfândega – entretanto também em construção – e outra para São Bento, cuja estação só viria a ser construída mais tarde. E, portanto, o basculamento de toda a atividade económica junto ao Rio Douro. Da atividade portuária e comercial lá para cima, para aquilo que nós chamamos de “Baixa”.  

Discutiam-se também coisas novas, a água e o saneamento, numa altura em que as questões do “higienismo”, da saúde pública, se punham cada vez mais, por causa dos “Covids” daquela época [risos], era um rio extremamente poluído por causa do saneamento que não existia, os dejetos iam para o rio. Era necessária uma estação de caminho de ferro, o novo e revolucionário meio de transporte, quer para pessoas, quer para mercadorias, que ia revolucionar a geografia do Porto. Facilitaria a rapidez e a comodidade das ligações a longas distâncias e faltava um eixo de ligação entre a parte baixa e a parte alta.  


Ao mesmo tempo o tabuleiro superior da Ponte Luís I anunciava já os carros, primeiro eletrificados, depois os primeiros veículos motorizados, portanto é uma transformação daquelas que só acontece de séculos em séculos.  

Ivo Poças Martins (IPV): A escolha do eixo [Mouzinho ao Aeroporto] aconteceu muito facilmente. Tinha um professor que dizia que o Porto se explicava de ponte a ponte e a Ponte da Arrábida, de facto, é o sinal da outra escala, da autoestrada, da modernização acelerada pós-guerra, da ligação ao Porto de Leixões. Mas também há o aeroporto e, portanto, aquilo que no passado tinha sido a novidade do comboio, é agora a novidade da motorização, do automóvel e depois do avião.  


(AD) E, portanto, o desafio que nós tínhamos era outro: ao longo desse eixo, que não se faz da mesma maneira que se faz a Mouzinho, a pé, olhando para as montras e percebendo que atividades são aquelas, esta é uma nova viagem motorizada, que fizemos de autocarro, de camião, de carro, e que vai registando os acontecimentos urbanos que, entretanto, se produziram. Começamos pelo Nó da Arrábida, em Gaia, passando pela Avenida da Boavista, percorrendo toda a zona do Foco e aquela erupção imobiliária ali à volta, seguindo depois a Zona Industrial do Porto, depois o fenómeno da Senhora da Hora, seguidamente Leixões e Leça da Palmeira e depois a zona do Freixieiro. Julgo que basicamente é esta a história que nós queremos contar, que hoje não faz sentido falar no Porto e imaginar que o Porto é qualquer coisa muito bem desenhada no mapa, com limites precisos.  


 

Mas quando atrás falavam deste trabalho de pesquisa que fizeram no próprio terreno, percorrendo este eixo alargado que circula e une estas cidades vizinhas, o que é que descobriram que, por exemplo, um cidadão comum habituado a circular nestas vias não repara? Esta expansão muito notória, nomeadamente na habitação, mas não só… 


(AD): Eu corrigia alguns termos da pergunta, deixando de falar na cidade e falando em urbanização. Tudo aqui à volta já tinha uma carga urbana bastante grande e basta pensar que, por exemplo, Matosinhos ou a Maia têm mais emprego que população. São o contrário do que as pessoas pensam, que são os dormitórios ou as periferias. Estamos perante uma geografia urbana completamente distinta. Muita gente sabe que o primeiro hipermercado Continente apareceu na Senhora da Hora e que quando se fala no Nó da Arrábida lembram-se que já foram ao cinema ao Arrábida Shopping e, portanto, o que mais encontrei foram visões pontuais. Este eixo é dominado por um traçado “autoestradal” que as pessoas acham que é diferente da rua: a rua é a dita cidade, a autoestrada não, é outra coisa e, portanto, a associação não é imediata. […] É como se a centralidade explodisse e o Porto perdesse o monopólio dessa centralidade e as atividades se espalhassem com lógicas de localização completamente diferentes. 


 

Olhando para esta exposição em concreto, falamos em documentos, em imagens que estão colocadas nas paredes… 


(AD): Há uma base de fotografia que é bastante assinável, até por causa da existência do Centro Português de Fotografia, mas também aqui no Arquivo Histórico há uma base fotográfica muito grande, muito rica, e tentamos ter, dentro dos possíveis, alguns documentos originais e desenhos de cartografia. Temos aqui o projeto de abertura da Rua Mouzinho, um dos documentos mais antigos que temos. É um documento de trabalho, não é um documento feito para ser exposto, mas é esse tipo de documentos que nós temos aqui também, claro que enquadrados com outros que, de ponto de vista iconográfico, são mais apelativos, como um saco de plástico do Continente, por exemplo.  


(IPM): [A exposição] Vive muito desta mistura: cartografia, fotografia, alguns livros e documentos, complementados com trabalho de produção original […] Mas temos também as fotografias que foi o Álvaro que tirou. Documentam muito bem o processo de investigação. E, para além disso, temos dois vídeos que funcionam em díptico, um focado no eixo da Rua Mouzinho [da Silveira] e o outro no eixo Arrábida - Aeroporto. 

 

Há aqui um percurso cronológico desde o início até à atualidade. Para quem entra na exposição, existe um percurso predefinido ou as pessoas podem começar pelo fim e fazer o percurso inverso?  


(IPM): Há uma sequência, e está explícita, mas não é “gritante”. Todas as vitrines em que estão dispostos os documentos estão ordenadas por letras – A, B, C, D… – por isso, em princípio, esse seria um possível percurso. Estão organizados não cronologicamente, mas geograficamente, e como o Álvaro falava, começaria no Nó da Arrábida, no Foco, na Zona Industrial, percorrendo todo o eixo da Arrábida até ao Aeroporto. No meio da exposição encontram-se três vitrines onde estão documentados, com ângulos diferentes, a Rua Mouzinho, e esta foi a forma de organizar toda esta informação que a certa altura, como já falamos, cria alguns cruzamentos.  


 

A Mouzinho acaba por ser um reflexo da vida numa cidade. Quando trocamos e-mails para tirar as fotos na rua, abordei o trânsito e as obras como possíveis entraves e disseram-me que isso “faz parte da condição inerente a uma rua da cidade” … 


(AD) [risos] 


… porque as ruas são isso mesmo, um espaço que está em constante mutação e isso acaba por ser também um reflexo de tudo aquilo que acontece nessa urbanização mais expandida que é o Porto atualmente.  


(AD): Sim, temos uma certa ideia [de cidade] porque olhamos para os mapas e vemos a rua no mesmo lugar, com o mesmo nome, e pensamos que é sempre a mesma coisa. Mas não é. Está ali uma fotografia, com um texto que se chama “Endoscopia”, onde um técnico, que penso ser de telecomunicações, tira uma ‘molhada’ de fios do subsolo. Noutra mesa há uns labirintos e podemos ver como é que eles se relacionam uns com os outros. A rua sem “tripas eletrónicas” ou com “tripas eletrónicas” é uma coisa completamente diferente, com rede elétrica ou sem ela igualmente, portanto, não nos podemos iludir com apenas um certo visual, muito superficial, dessa rua porque isso não nos dá chaves de compreensão do que se está a passar. A Mouzinho está a passar por um processo de globalização completo.  


(IPM): E foi um bocadinho esse o desafio. A Mouzinho é tida como uma rua que, no mapa mental, sempre cá esteve, faz parte do passado, é muito histórica e, como se dizia no início, “só os historiadores olham para isto”. Mas também acho que é esse o desafio que se propõe, olhar para a rua com uma visão renovada.  


 

Como é que hoje o Porto olha, afinal, para esta rua?  


(AD): Creio que é um discurso que contém muitos elementos de contradição, porque sendo a rua toda reformatada pelo turismo, acaba por ir buscar a polémica do turismo. Para muitos é o renascimento económico que fazia falta, porque a cidade estava num plano inclinado em termos de capacidade de fixação de emprego e de atividade económica; para outros é o contrário, é uma espécie de overdose, que provoca uma espiral inflacionária impressionante e que funcionou como dinâmica de expulsão quer de residentes, quer de atividades que não eram capazes de acompanhar esse processo inflacionista e, por isso, não quero aqui provocar nenhum consenso sobre isto.  


Existe essa diversidade de opiniões e ela pode ser avaliada de muitas maneiras. E, portanto, é um fenómeno em observação, não é nada que seja novo. O Porto é simplesmente dos últimos a entrar nesta dinâmica, que em Itália, por exemplo, já tem ‘barbas’. Às vezes há uma grande dramatização do discurso sobre isto e parece que o Porto está resumido a estas polémicas e não se olha para outras questões. Criticam-se certas formas muito apressadas e, às vezes, contraditórias de como mexer no património. Aliás, são conhecidas algumas polémicas, desde as Cardosas até operações de puro “fachadismo”, em que o que interessa é apenas a fachada do edifício, e nesse sentido percebe-se quando subimos a Mouzinho ou descemos, que ela está “higienizada”. Lembramo-nos de ver fotografias da Mouzinho cheia de néons, com todas as marcas da passagem do tempo, e agora há uma única paleta de cor, com tudo limpinho. Mas também há uma porta ou uma montra que se transformou num multibanco, ou um lettering que está em inglês e coisas desse tipo.  


Sobre o turismo é habitual esta polémica, uns dizem que é uma espécie de Disneylândia e que, portanto, terá perdido a alma e se terá convertido numa espécie de parque de diversões com uma rotatividade muito grande, sobretudo aos fins de semana, quando os aviões despejam milhares de turistas. Mas outros dizem-te que é um ativo, ou seja, uma forma de atrair visitantes, consumo e com isso “animar” a economia da cidade.  

  

Entrevista: José Reis 

Fotos: Guilherme Oliveira e João Coelho 

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