15/04/2025

“Cantar Abril” é um projeto de cariz social, que propõe uma leitura da Liberdade pela voz e olhares de vários sem-abrigo do Porto. A poucos dias do concerto agendado para a Avenida dos Aliados, na tarde do feriado da Revolução dos Cravos, assistimos a um ensaio no polo de Camapanhã dos Albergues do Porto, com direito a temas conhecidos, sorrisos largos e a esperança de que Abril se faça todos os dias.

 

Se a sexta-feira é santa, a festa de aniversário de Amélia será tudo menos sagrada. “Até porque não sou santa nenhuma”, atira, com uma gargalhada. Faz 61 anos dentro de dias, a poucos dias desse momento que lhe vai ficar marcado na memória – e nas pernas, que, já sabe, irão tremer com a ansiedade. “Fico sempre nervosa antes de entrar em palco, cheia de vergonha”. E não falamos aqui da desejada festa de anos, mas do (não menos desejado) concerto que o grupo Cantar Abril irá protagonizar na Avenida dos Aliados, na tarde do Dia da Liberdade. “A minha expectativa é grande, até porque este grupo é muito bom, cheio de gente preparada”, refere.

 

 

Amélia Ribeiro é uma das intérpretes que se reúne neste grupo formado por utentes dos Albergues do Porto (Campanhã e Rua Mártires da Liberdade). Chegou ao Porto há um ano, depois de uma vida feita (e refeita) entre Guimarães e Vila Nova de Gaia. Hoje, encontrou algo de que se orgulha. “O que se aprende aqui? Que realmente consegui algo dentro de mim que eu mesma desconhecia”.

 

Projeto que se expande pelos palcos

 

São “vitórias” como esta que enchem de orgulho (e emoção) a voz de José Pinto, o assistente social mais acarinhado por estas bandas e a quem, carinhosamente, todos tratam por Chalana. “Conseguimos reunir, num primeiro momento [Abril de 2024], 25 utentes da instituição. Começamos por comemorar os 50 anos dessa data histórica [Revolução dos Cravos], mas o projeto correu tão bem que continuou”, revela.

 

 

Com maior ou menor estranheza, o projeto foi-se consolidando e conta, hoje, com 18 membros fixos, “mais alguns que chegam trazidos pelos elementos que não desistem”. Aqui e agora, na cantina do Albergue de Campanhã, ensaia-se Sérgio Godinho, evoca-se José Mário Branco, envolvem-se nas letras de Zeca Afonso.

 

“A música é uma linguagem universal, procuramos sensibilizar a política com estes projetos, de todos têm o direito a viver com dignidade, para contrariar a forma como se trabalha com os utentes em situação de sem abrigo".

 

 

“Olham para esta gente como coitadinhos que precisam de comida e de agasalhos, mas não queremos isso. Queremos oportunidade de trabalho e um espaço digno para viver”, sintetiza Chalana.

 

Da música popular às letras decoradas

 

Do outro lado do Douro, António Martins, de 62 anos, recorda ainda o tempo “dos karaokes” em que participou, quando a vida era outra. “Cantei música popular, o malhão”. Hoje, as letras são outras, mas a experiência continua a ser “uma beleza”.

 

 

“Tenho gostado desta experiência, tem sido muito boa e sinto que tenho aprendido muito com os meus colegas”, utentes e não utentes que se aglomeram na exígua cantina.

 

Abílio Vale, frequentador do Albergue na Rua Mártires da Liberdade, junto à Praça da República, concorda com António. “Os meus colegas são espetaculares. Estivemos um mês a tentar decorar as letras, mas estamos ainda a olhar para o papel, para nos lembrarmos”, sorri.

 

 

Por entre versos cantados a plenos pulmões, com ajuda de músicos profissionais e trabalhadores dos Albergues, lá revela que o concerto para o qual estão a ensaiar “vai ser um grande sucesso, acho que vai gerar uma grande expectativa, numa data importante como o 25 de abril”.

 

Memórias de quem nasceu depois

 

O concerto dos Cantar Abril fará a primeira parte do grande espetáculo da tarde de 25, com os Retimbrar. Espera-se uma Avenida cheia de curiosos, com os cravos na mão, a proclamar a importância de um país em Liberdade.

 

 

Com mais ou menos memórias, todos cantam pela conquista alcançada há 51 anos, quando tudo parecia um deserto cinzento, onde a expressão era coartada pelos poderes vigentes.

 

Vítor Pinto é dos mais novos do grupo e no 25 de Abril de 74… bem, a pergunta que tanto se faz não se adequa a ele. Tem 32 anos, conhece a história por aquilo que leu e viu depois, mas sabe que cantar a Liberdade não tem idade e condição social.

 

 

“Gosto muito deste grupo e é pela união de todos nós que conseguimos alcançar esse sucesso”, revela. Há seis anos que os Albergues do Porto são mais do que uma casa, é o local onde encontra amigos e constrói um futuro com horizontes que extravasam as paredes deste edifício.

 

De poucas palavras, assume que decorar as letras “não é fácil”, mas com vontade tudo se consegue. No feriado da Liberdade estará em palco, como uma estrela que enche estádios, com a certeza de que, sem ela, não conseguiria ter esta oportunidade única – e que não acontece, afinal, uma vez na vida.

 

Texto: José Reis

Fotos: Guilherme Costa Oliveira e Sofia Hügens

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