27/04/2022

No momento em que as Inaugurações Simultâneas de Bombarda completam 15 anos, percorremos a rua que se tornou um dos epicentros das artes plásticas e visuais na cidade. A poucas semanas do encerramento das presentes exposições – para dar lugar a outras, novas, com tantas ou mais histórias para contar, a partir de 14 de maio -, caminhámos por esta artéria acompanhados por Ana Silva, um dos rostos (e motores) desta atividade que se tornou uma tradição no Porto.  

 

Ana ainda se lembra do tempo em que as portas estavam fechadas - e quem passava na rua nem se apercebia do muito que se passava, no interior. “Não existia abertura dos dois lados, os espaços não estavam habituados a receber as pessoas e o público acabava, dessa forma, por não aderir”.  


O discurso recua a 2007, “pouco depois de ter saído da faculdade”, tempo em que a desconfiança sobre o mundo das artes era permanente dentro de uma comunidade pouco habituada à oferta cultural. “As pessoas gostavam, mas não entravam. A porta fechada era, na maior parte das vezes, um convite a que não entrassem”. 


Ana Alves da Silva tem 37 anos e é a cara visível de uma atividade que, de dois em dois meses, junta várias galerias num evento comum. As Inaugurações Simultâneas de Miguel Bombarda surgiram nesse ano, em 2007, da necessidade de esbater “essa fronteira” que claramente existia, de criar uma relação mais direta, menos nebulosa, mais assumida entre a arte, os artistas e o público. 



“Esta foi a forma de juntar as pessoas que trabalhavam individualmente, de forma esporádica. Criar um evento conjunto com uma regularidade e estratégia pensadas”, assume, apontando o nome de Marina Costa (a quem se reconhece um importante papel na afirmação no mapa cultural e urbano da cidade, com o surgimento, naquele local, do Artes em Partes) como peça fundamental para um projeto que colocou a rua na mira da arte contemporânea. 


“A adesão foi gradual, as pessoas iam aderindo a esta nova dinâmica”, lembra, apontando 2018 como o ano da “viragem”. “Foi o momento da reformulação do projeto, onde percebemos o que funcionava e o que podíamos melhorar, tendo em conta todo o conhecimento que adquirimos ao longo dos anos”. 


Ana diz que a principal mudança no desenho da atividade passou pela quantidade de pessoas envolvidas (e, neste caso, quantas mais melhor!). “O objeto central é o desenho comunitário, desenhado pela e para a cidade”, resume.


Ou seja, a partir de então, “todas as ações de rua, como os cartazes e a comunicação, são desenhados em parceria com entidades independentes locais”, acrescenta.  


A conversa continua rua abaixo (ou acima, conforme a perspetiva), com paragens em diferentes pontos que marcam o nosso roteiro.  


 

Paragem 1: Galeria Serpente 


Rodrigo Cabral é uma daquelas pessoas que fala com os olhos, sem a necessidade de articular qualquer palavra. É um nome reconhecido no meio artístico e do ensino superior nesta área. É um dos mais antigos galeristas da rua, responsável pela Galeria Serpente (na parte pedonal da rua, perto do Palácio de Cristal), “com mais de 20 anos na cidade”, um espaço dedicado à fotografia, instalações, performances e vídeo arte.  


“Temos tido a possibilidade de expor jovens autores que, sem esta oportunidade, teriam menos hipóteses de se apresentar”, o que demonstra também a renovação de público que, apesar de tudo, se tem mantido fiel.  


“As pessoas foram perdendo o temor de entrar em galerias e espaços de exposição, há um público mais generalista, feito de curiosos e até conhecedores”, assume, logo acrescentando que “o público especializado vem nos dias em que há menos confusão”. 



Olha em redor, para os trabalhos que ocupam as paredes (outrora) brancas. “É uma exposição que decidimos manter aqui até maio, que vem já de 2021”, revela, sob o olhar atento de Paulo Moreira, o artista que assina este conjunto de obras que compõem “Blank Dreams (who’s afraid of the blank canvas)”.  


“São trabalhos de produção recente, foram realizados durante a pandemia”, destaca o artista, logo acrescentando que “o desenho ocupa especial relevo, em tela onde constam a colagem e a sobreposição de materiais”, enaltece o autor. 


 

Paragem 2: REM Espaço Arte 


Na REM Espaço Arte, a fronteira entre a rua e a galeria é ténue, quase mínima. Não é que não exista a separação normal entre o exterior e interior (sim, existe uma porta!), mas este é um espaço onde a arte urbana (ou a arte das ruas) tem sítio privilegiado.  


“As curadoras sempre tiveram um gosto particular por esta forma de expressão”, assume Filipe Granja, um dos artistas em exposição que, por indisponibilidade das responsáveis – Helena Leão e Maria Antónia Gomes -, é a voz do espaço que nos acolhe no local.  


“Esta galeria tem dedicado as suas apresentações a um vasto naipe de artistas, dos mais consagrados aos novos talentos, mas agora fazia sentido uma mostra mais panorâmica da arte urbana”, assume, junto a esta coletiva de 14 artistas (em que podemos destacar, sem ferir os demais, os trabalhos de Catarina Glam, Oker, Hazul, Deepho, Mr Dheo ou mynameisnotSEM, o alter-ego do nosso interlocutor). 


Filipe está também representado nesta exposição. “Trabalho muito com o abstracionismo geométrico, são repetições, como na música eletrónica. Este trabalho é também uma extensão dessa minha investigação, é a materialização desse meu trabalho na lógica da sobreposição e repetição”. 


O trabalho do artista foi, aliás, a imagem oficial que invadiu as ruas, semanas antes das inaugurações coletivas. 


 

Paragem 3: Colletiva, Centro Comercial Bombarda 


Marina Costa (já antes falámos dela) recebe-nos" no coração do coração” desta rua, no interior do Centro Comercial Bombarda. A ela se deve grande parte da movida local, criada noutros tempos e perpetuada até aos dias de hoje. 


Depois de um sem número de espaços e galerias, criou há cinco anos a Colletiva, “projeto dedicado à joalharia contemporânea”, um dos poucos do género na cidade (e um dos raros exemplos nesta rua). 


“É uma loja e uma galeria, um espaço de exposição onde se potencia o reconhecimento desta arte, que tem registado um boom nos últimos anos”, assegura. 



Para além do muito que por lá se pode ver, há por estes dias uma mostra de trabalhos da dupla Maikai (composta pelas designers Maria João Rodrigues e Leonor Guedes). 


“’Overdose’ é o nome da exposição que aqui apresentamos”, começa por enunciar Maria João, “onde os objetos propostos representam partes do nosso corpo. São peças com muita cor, diferentes, com formas arrojadas e dentro da linguagem a que habituamos os nossos clientes”, continua. “Construímos, essencialmente, as coisas para nós, o que gostamos e o que nos dá prazer”. E, no final, “acreditamos que alguém se vai identificar connosco”, resume. 

 

E, entre galerias, … 


… hoje são 14 os espaços que fazem parte deste evento. Perto da data de inauguração, todos aprimoram as montras, as paredes e as cores ganham nova vida. Mas não são apenas as galerias que se rendem a este calendário.  



“Os próprios estabelecimentos da rua querem fazer também parte deste momento e definem montras especiais para a data”, revela Ana Silva, enquanto percorremos a rua, por entre uma chuva miudinha, e antes de entrarmos na galeria seguinte. 


“Há aqui uma loja de meias [aponta para um vidro] que, em todas as inaugurações, faz uma montra criativa”, o que demonstra a forma como a rua tem sido contagiada pela energia que emana das artes plásticas e de como se torna parte da rotina que define o dia a dia… 


… e retomamos a “viagem” dentro de portas, mais uma vez. 



Paragem 4: Galeria Adorna 


Estefânia r. é uma das curadoras mais conhecidas (e expressivas) da rua. Recebe-nos numa galeria que já conheceu várias vidas e várias moradas. No entanto, o foco sempre foi o mesmo: a fotografia e as suas diferentes abordagens.  


É ela a responsável e curadora de “teste #2 Territórios”, uma coletiva de fotografia contemporânea (assinada por quatro fotógrafos) que “regista as deformações e o dinamismo do espaço físico”. Aborda o território desde a denúncia do espaço poluído dum rio no trabalho “Pego Negro”, a ficção de uma geografia reconstituída em

“Highlights”, a memória no trabalho “Voyages de la nuits” e a poética crua em “New York”.  



Os trabalhos são assinados por Bruno Silva, Joachuim Luxo, Louise Narbo e Mikael Ackerman, “numa nova narrativa, um conto reconstruído a partir de quatro histórias”, assume.  


Em cima da mesa, que ocupa grande parte deste local, fotografias de diferentes dimensões, a preto e branco, levam-nos a viajar por diferentes países e realidades, com diferentes técnicas e ângulos. 



Bruno Silva, um dos artistas presentes na coletiva, não nos leva longe. “Pego Negro, que dá título a este trabalho, é o nome de uma localidade que fica nas margens da cidade do Porto, entre Rio Tinto e Campanhã”, revela o artista, junto aos seus retratos. 


O trabalho apresentado, “poluído” pela água do rio Tinto, “resultou em algumas solarizações, negativos riscados”, adiciona o autor, “o que tenta criar uma estética muito própria do local. Ajuda nesta ideia de film noir de que tanto gosto, em que há sempre algum culpado”. Ele não está lá, nunca é identificado. “No fundo, conta uma história sem a revelar totalmente”, assume. 


 

Paragem 5: Galeria Ap’Arte 


Mais à frente, encontramos Júlio de Matos, Paulo Ossião e António Charrua. Estes são os três autores patentes na Galeria Ap’Arte, local de dois andares a meio da rua.   


“Os três espaços da galeria são ocupados por três exposições individuais de três tipologias diferentes: pintura, aguarela e fotografia”. Cátia Brandão é quem nos acolhe. De sorriso prestável, com toda a disponibilidade para nos guiar entre salas, uma a uma, acompanha-nos pelo universo dos autores. 


“Aqui temos 27 obras de António Charrua realizadas entre as décadas de 50 e 60”, aponta, enquanto caminha para a próxima sala. “Aqui está o Paulo Ossião com o tema do Porto. São 20 aguarelas feitas por este autor que, não sendo do Porto, dedica as suas obras à cidade sempre que expõe cá”, diz Cátia. 


Na parte de cima, a fotografia. “Uma exposição de Júlio de Matos que é uma homenagem à cidade. São fotografias originais, com mais de 40 anos. Mostram um pouco da vida do Porto nos anos 80”.  


Cátia Brandão despede-se com um sorriso, o mesmo que nos acolheu, nos guiou e nos acena no final da visita, de saída para a próxima paragem. 

 


Paragem 6: Galeria Trindade 


Da rua, parece ter pouco mais do que meia dúzia de metros. Mas o espaço estende-se para o piso inferior, que serve como repositório de um sem número de artistas. 


A Galeria Trindade, pertença de Paula Sá, tem mais de 20 anos – surgiu em 1999 – e tem uma abrangência eclética, trabalhando sobretudo com mulheres. “Porque eu gosto”, assume a proprietária.  


A escolha recai, por estes dias, na obra de Catarina Garcia, “uma jovem de 36 anos das Belas Artes de Lisboa. Já trabalha connosco há dez anos, através dos livros de ilustrações que apoiamos”, diz a galerista.  


Nesta mostra, de quadros com dimensões reduzidas, “até pelas medidas reduzidas do nosso espaço”, são apresentados trabalhos de pintura “muito contemporânea, que têm a ver com as vivências dela, já que é uma autora que gosta muito de música e de dança”, resume Paula. 


“Como a galeria tem um espaço pequeno, tivemos de nos adaptar e trabalhamos hoje com obras mais pequenas”, confessa, logo acrescentando que, apesar desta menos-valia, o público é eclético “e tem vindo a aumentar”, revela, já com o escuro da rua a invadir o interior da galeria, com as cores dos quadros a “iluminarem” este final de tarde.


 

Outras Paragens: Galerias Fernando Santos, São Mamede e Ó Galeria 


Nesta visita demorada pela rua, recomendamos ainda uma paragem na Galeria São Mamede para apreciar a exposição intitulada “Cidades para o Futuro”, de Nadir Afonso, “um dos maiores vultos do modernismo português”, como revela o galerista Francisco Pereira Coutinho.  


A Galeria Fernando Santos, por seu lado, tem duas exposições em espaços diferentes. “No espaço principal apresentamos a exposição ‘O hóspede da casa do Infinito’, com obras da autoria do artista Avelino Sá, e no Espaço 531 está patente a exposição “There is a fine line betweeen genius and insanity... but you snorted it”, da autoria dos artistas Bosco Sodi, Jorge Galindo e Richie Culver”, descreve Juliana Pinho, por e-mail. 


A Ó Galeria, por seu lado, exibe “Proibido Colar Cartazes” do ilustrador espanhol El Marquès. “Finalmente iremos expor o seu mais recente trabalho, um conjunto de ilustrações em formato de cartaz que nos levam para outra época com o seu estilo retro”, assume Ema Ribeiro, proprietária da Galeria. 


 

E antes de terminar a viagem… 


… tempo para falar de futuro. Um futuro que se escreve a curto, a médio e a longo prazo. 


“Depois deste processo todo da pandemia, em que tivemos de parar, é tempo de repensar, de reorganizar”, talvez fazer aquilo que antes não foi feito. “Pensar para onde vamos, mas com uma certeza: a de que vamos todos juntos”, diz Ana Silva. 


A designer, que um dia acreditou que tudo isto podia fazer a diferença – e fez! -, assume que o projeto tem caminho para andar, com o intuito de ser “equilibrado, sustentável, com resultados práticos na vida das pessoas”. “E que inclua sempre as pessoas, pois acredito na face transformadora da arte na vida delas”. 


A tarde já vai longe (e foi longa!), o escuro da noite é inundado pelas luzes artificiais da rua, o trânsito atenuou a intensidade de um dia normal.  


Chegamos ao final da rua, no encontro com a Rua de Cedofeita. É tempo de despedidas. 


“Sabes, não procuro a monumentalidade, o fogo de artifício, ser o melhor projeto da cidade”, revela, em final de conversa, enquanto sorri. 


Mesmo sem querer, sem procurar esse desígnio, sabe, no fundo, que é o rosto de uma iniciativa que não deixou o domínio das artes plásticas no mesmo sítio. E já lá vão 15 anos. De uma mudança que promete não parar.  

 

Texto: José Reis 

Fotos: Guilherme Oliveira e João Coelho 

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