09/04/2024

No ano em que o programa municipal desenhado por Rui Moreira e Paulo Cunha e Silva completa dez anos, a Ágora promove um conjunto de reportagens que transportam o leitor ao interior do projeto, com história(s), intervenientes e memórias. Como um livro, os dez anos de vida do Cultura em Expansão são feitos por capítulos, com diferentes interlocutores e com experiências irrepetíveis. Uma vez por mês, viajamos na aventura de se viver a cultura fora de portas “de mãos dadas” com as lembranças de quem as viveu. Começamos com Guilherme Blanc, que esteve na génese desta iniciativa municipal.

 

Quando queremos contar uma história, por mais pequena que seja, aconselham-nos sempre que o façamos pelo início, por muita vontade que tenhamos em saltar capítulos e chegar ao final mais depressa. É isso que vamos fazer aqui. A partir de agora. Se é para contar a história do Cultura em Expansão, feita de dez capítulos, vamos começar pelo princípio, pelo capítulo um. Aquele que enquadrará tudo o que se seguirá.

 

Comecemos por quem o pensou, como ideia “presente no manifesto político” de um executivo que procurava abrir(-se) à cidade. Estávamos no início do primeiro mandato de Rui Moreira à frente dos destinos da Câmara Municipal do Porto. 2013. Como vereador da Cultura, o incontornável pensador e homem das letras e ciências, Paulo Cunha e Silva. Em cima da mesa, muitas ideias para uma cidade que tinha vivido um definhamento cultural sem precedentes nos anos anteriores. Era hora de pensar uma área abandonada pelo anterior executivo e destacá-la como ela merecia.

 

[O Cultura em Expansão] Foi um projeto pensado pelo presidente e pelo vereador [Paulo Cunha e Silva] que pudesse abrir-se a toda a cidade, explorar lugares incomuns do ponto de vista prático-cultural”.

 

 

Guilherme Blanc trabalhou na génese do projeto, na altura ainda com outro nome “provisório”, mas que depois adotou o auspicioso “Cultura em Expansão”. Nos primeiros dois anos, assume o agora diretor artístico do Batalha Centro de Cinema, a iniciativa foi muito pequena, “com duas ou três récitas apenas”, testando o terreno e calcorreando os limites cada vez mais extensos da apresentação cultural na cidade. Sempre com esta ideia de trabalhar “fora das centralidades culturais mais ortodoxas”, diz-nos.

 

O projeto ficou para sempre com a marca de Paulo Cunha e Silva, vereador que faleceu em 2015 e que deixou trabalho visível na cidade (e que certamente nunca será esquecido). Um deles é este programa, que “cresceu, se transformou e encorpou”. Mas, no fundo, a ideia base continua lá. “Fazer com que a prática cultural consiga alargar-se a toda a cidade, ter uma dinâmica participativa, inclusiva, e sair dos palcos municipais mais convencionais”, resume.

 

Entusiasmo da cidade ao acolher o novo projeto

 

Nesta história, Guilherme Blanc teria de ser a figura do primeiro capítulo desta narrativa. Muito dele esteve presente na programação que desenhou nos primeiros anos, procurando descentralizar propostas e públicos. Começou por ocupar quatro espaços em quatro pontos cardeais distintos, criando esse fluxo de pessoas pela cidade e potenciando a cultura fora de uma suposta centralidade definida por umas quaisquer elites.

 

 

De Campanhã à Pasteleira, da Bouça a Miragaia, passou também por associações mais pequenas que se tornaram grandes na forma como acolheram, de braços e coração abertos, artistas que não conheciam, práticas que nunca ninguém lhes tinha dado a ver, experiências que só uma cidade que vive para os seus cidadãos pode proporcionar.

 

Lembro-me que o projeto foi logo recebido com muito entusiasmo, nos primeiros anos. Pelas pessoas que iam ver os espetáculos e até pelos intervenientes convidados”, destaca Blanc, que ocupou funções de direção entre 2016 e 2020.

 

 

“Muitas vezes o público fez parte. Tínhamos projetos participativos e não participativos, também com uma ideia dupla, que era com público local e público não-local”, resume. Porque o objetivo era mesmo esse: porque é que alguém que vê espetáculos em auditórios como o Rivoli, em Serralves ou no Teatro São João não podem ir a um bairro ver um espetáculo igualmente bom? “Foi nesse pensamento que o programa cresceu, nessa confluência e pendularidade”. Deixamos de ter preconceitos em ir a uma associação ver um espetáculo de um artista reconhecido. Os artistas deixaram de ter pudor em adaptar as suas propostas para estruturas menos convencionais. Passamos a ter orgulho em acompanhar uma programação diversa, com qualidade, em sítios que nem conhecíamos – e que, felizmente, passamos a conhecer.  

 

Espetáculos que nunca vai esquecer

 

Na tarde de uma segunda-feira de sol, a Biblioteca do Batalha Centro de Cinema acolhe o discorrer de memórias de alguém que está ligado, para sempre, a este programa. Por entre livros de cinema e figuras que marcaram o imaginário cinematográfico, Guilherme Blanc revela outro momento fundamental do Cultura em Expansão, que foi quando convocou agentes locais, “parceiros de produção”, para participarem nesses territórios. “Havia agentes no local, fixos, a trabalhar para o projeto e, um ano mais tarde, transformaram-se em parceiros de programação”. Falamos, hoje, da Sonoscopia na Bouça, da Confederação em Miragaia, do Teatro do Frio na Pasteleira e do Visões Úteis em Campanhã.

 

A partir deste momento, cada território começou a delimitar a sua ação, com espetáculos diversificadas que partiam das propostas dos parceiros, sempre envolvendo a comunidade, sempre pensando no ambiente que se viva ao redor. Não se impondo, mas integrando-se.

 

 

“Do muito que foi feito, destacaria o OUPA!, pela forma como conseguimos envolver a música com diferentes grupos e bairros. Mas destacaria ainda os projetos de cinema comissariados por nós, que foram muito importantes, por vários motivos: o filme da Leonor Teles e do João Salaviza, que competiram em festivais internacionais”, enumera.

 

Mas há mais, como “aquele projeto muito bonito, com o [pianista] Pedro Burmester a tocar com uma performance, em filme-pelicula, da Mónica Baptista, ou o concerto dos Glockenwise com a Orquestra Juvenil da Bonjóia”.

 

Aliás, em todo este processo, se há iniciativa que o enche de orgulho é aquele em que comissariou a apresentação de artistas com cenografias criadas propositadamente para o efeito. “No caso dos Glockenwise foi com o cenário da Ana-Pérez Quiroga. Mas houve outro muito interessante, em que convidei o Diogo Evangelista para cenografar um concerto de Simone de Oliveira”. E o cenário era… “o cheiro dela. As pessoas chegavam e recebiam um frasco com o cheiro da Simone e podiam ir cheirando enquanto decorria o concerto, foi um momento especial”, sorri Guilherme Blanc.

 

Em 2020, desligou-se deste programa, assumindo a direção artística da Galeria Municipal do Porto – e, posteriormente, do Batalha Centro de Cinema, onde se mantém há mais de um ano. Mas nunca é possível desligar-se a 100 por cento de um projeto cuja identidade depende muito de quem o pensou.

 

 

“Acho que é um projeto incrível, muito importante a vários níveis. É importante a nível artístico, com o surgimento de grandes coproduções e ideias artísticas que saíram deste programa. Só que, ao invés de serem implementadas num grande palco ou num grande centro de arte, são implementadas nestes lugares”, conclui Guilherme Blanc.

 

Talvez falar-se em democratização do acesso à cultura nos possa levar a novas discussões, e ter como exemplo este programa, mas esse é assunto para outros “quinhentos”.

 

Nota: Esta reportagem faz parte de um conjunto de dez artigos que serão divulgados durante os próximos dez meses

 

Texto: José Reis

Fotos: Rui Meireles

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