Num tempo em que falar do desporto para todos se torna um assunto presente, em que as barreiras começam a cair e os clubes começam a abrir o espectro para a prática de atletas femininos e masculinos, ainda há espaço para o preconceito? A Ágora fecha este ciclo de reportagens sobre o desporto “sem fronteiras” com o exemplo de Alexia Ferreira, praticante de boxe e campeã nacional na categoria de menos de 57kg. Uma história de superação que começou, afinal, na infância, muito influenciada pela irmã mais velha.
“O meu pai perguntou-me: ‘queres ir para o boxe?
Eu respondi: ‘não’.
E ele perguntou novamente: ‘Mas queres ir para o boxe ou para o kickboxing?’
E eu respondi: ‘só quero ir para a beira da minha irmã’”
No banco de trás do carro do pai, aos sete anos, a caminho do treino da irmã mais velha, numa rua pelo centro da cidade, foi a primeira vez que Alexia entendeu que havia um plano definido para o seu futuro. Não sabia o que era aquilo que a irmã praticava, só sabia que queria estar com ela. Estivesse ela onde estivesse, a fazer o que quer que fosse.
“’Ok, então vais para o boxe’, disse-me ele.
Eu encolhi os ombros, não quis saber. Só queria aquele conforto de irmã”.
Nessa noite deixaram a irmã, sete anos mais velha, no treino e voltaram para casa, com o destino traçado. Alexia sabia que, nos dias seguintes, iria iniciar-se uma nova fase. Porque há sempre um tempo antes do boxe e um tempo depois do boxe.
Alexia Ferreira tem hoje 19 anos e uma garra de miúda imparável que há 11 pratica a modalidade. Depois dessa viagem de carro, seguiu-se a inscrição no Futebol Clube do Porto, onde esteve quatro anos. Treinava três vezes por semana, mas mais por diversão. Aos 12 anos desistiu, queria algo mais. Coincidiu com a descoberta de novas modalidades nas aulas de Educação Física. Mas, na realidade, nada a motivou.
Aos 15 voltou aos treinos intensivos de ginásio e musculação. Do outro lado do vidro, via as aulas de boxe dadas pelo Amândio Mexicano, um reconhecido boxeur da cidade. ‘“Pá, fogo, que saudades dos tempos em que treinava boxe”, pensei eu. Daí a uns dias estava de volta à modalidade”, recorda a jovem atleta. Tinha, então, 16 anos.
Da curiosidade ao boxe técnico
Na noite em que marcámos encontro com Alexia, percorremos um corredor fundo, estreito, de madeira pintada de várias tonalidades, na antiga Junta de Freguesia do Centro Histórico, transformado agora em local polivalente.
Passam por nós dezenas de atletas em fato de treino. “Vieram ter com o Litos?”, perguntam-nos. Encolhemos os ombros, como se esse nome de código, reconhecido por todos, fosse o nosso destino. Litos não é mais que o nome pelo qual é conhecido o atleta Carlos Costa, responsável pelo clube União Desportiva da Sé 1938 e treinador de Alexia. Cruzámos a porta que dá acesso à zona de treinos, com um ringue no meio, sacos pendurados, cordas de saltar pelo chão e cartazes, muitos cartazes, memórias de campeonatos onde o clube participou.
Há espelhos, degraus que nos levam ao piso inferior, luzes LED que ligam e desligam, que mudam de cor, há sangue, suor e algumas lágrimas. Litos acolhe-nos, leva-nos a dar uma volta pelo espaço, “aqui fica a zona de treinos individuais, aqui o ringue de competições”. Apresenta-nos Alexia, menina-mulher que decidiu integrar o clube por ser “mais perto de casa” e por ter “o padrinho” nesta coletividade.
“Comecei aqui com 16 anos e aos 17 já estava a competir”, resume, vestida a rigor, uniforme oficial, tranças no cabelo, protetor bocal e centenas de histórias para contar. Vamos à primeira, a do início. “Na verdade, eu não tinha bem a noção, mas sempre gostei de ‘porrada’, sabes? Desde pequena que era rebelde e era a rapariga que sempre protegeu as amigas. Não tinha medo de ninguém”, relembra. Ao contrário do que se possa pensar, o boxe deixou-a mais calma, “mais descontraída, apesar de sentir a adrenalina no máximo”.
A rebeldia acabou por ser disciplinada com a ajuda de Litos e Nelinho, outro dos treinadores do clube. “O meu boxe é o deles, mais técnico, com força e garra, sempre a acreditar em mim”. Para isso muito contribuíram os gritos que ouviu, a força que lhes via nos olhos do outro lado das cordas, a esperança que encontrava no final de cada combate. “Porque é a mente que nos controla por inteiro. O cérebro comanda o jogo. E quando queres vencer, é algo que vem de dentro, das entranhas”. Quando se consegue, é muito bom. “Não há explicação, é uma alegria que rebenta dentro de ti”.
Disciplina e rigor para chegar longe
Aos 19 anos, Alexia é o orgulho do clube. Em “dois anos e pouco”, já conseguiu 17 prémios. Combate, atualmente, na categoria de menos 57kg. É campeã nacional da modalidade e venceu a Taça de Portugal na época passada. Lembra-se dos detalhes de cada combate. Com pormenores. Porque cada medalha tem uma história.
“Até aquelas que representam derrotas me fizeram ganhar”, admite. “Porque quando ganhas és o melhor do mundo, mas quando perdes já não és. Eu nunca pensei assim, sempre acreditei que as minhas derrotas diziam que eu ia chegar lá, que os melhores dias vinham a caminho”. Não se enganou, dias mais luminosos chegaram.
Ao longe, o treinador observa a conversa enquanto atira ordens para dentro do ringue. Nesta fábrica de campeões, a palavra de ordem é sempre vencer. Por muito que a rispidez do discurso possa assustar os mais incautos, os atletas sabem que tal forma representa o rigor, a assertividade, a confiança em quem combate. Litos, Nelinho e outros treinadores são os primeiros a acreditar nas capacidades de cada um dos atletas. E nunca desistem de ninguém, mesmo que haja mais vontade ou mais preguiça.
“Isto não é só porrada, não é mesmo”, repete Alexia, como um mantra, para que acreditemos. A segurança do atleta está em primeiro lugar, o sangue faz parte do jogo, as nódoas negras passam a ser uma constante na pele de todo o dia. Mas todos lutam pelo amor ao desporto, pelo que retiram no final.
“Se vou seguir o boxe profissional? Não sei, neste momento vou focar-me no amador”. Alexia está a terminar o 12.º ano, gostava de seguir desporto no ensino superior, mas fica dividida entre ser professora ou monitora num ginásio. Não gosta de refrigerantes, a água é a sua bebida de eleição e não se restringe na hora de comer. No entanto, prefere uma salada a batatas fritas. Porque sabe que, neste desporto, tudo conta.
Nada se consegue sem perseverança, persistência e sentido de responsabilidade. Mesmo que o chocolate seja uma das perdições a que não resiste. “Sei que depois de o comer vou ter que o queimar, de alguma forma”, sorri, antes de entrar no ringue para um novo treino.
Texto: José Reis
Fotos: Nuno Miguel Coelho