No âmbito do ciclo de reportagens que a Ágora publica sobre a pertinência de se falar sobre as questões de género no desporto – e se ainda existem faz sentido falar em restrições de acesso a diferentes modalidades -, conhecemos Daniela Correia, atleta com 17 anos de futebol nos pés e 16 anos de rugby nos braços. Aos 36 anos, é hoje a capitã da Seleção Nacional Feminina.
Qualquer que seja a camisola que envergue, o símbolo cai sempre em cima do que mais conta na hora de falar de rugby: em cima do coração. Fala com o coração, com a rapidez de um batimento cardíaco, com a história apurada ao pormenor. Na ponta da língua. Na voragem do pensamento. Ao pormenor, como se o ontem estivesse tão vivo como o hoje.
O céu azul de uma manhã fria de inverno testemunha um percurso ímpar. Passam poucos minutos do meio-dia, na última semana do ano de 2023. Está a terminar um ano memorável. No fundo, mais um. Nestes últimos tempos, por entre o cansaço das provas, das viagens, dos confrontos e das alegrias, o balanço é positivo. Ao fim de 16 anos de uma vida devotada a este desporto, há que ver o copo meio cheio. Ou totalmente cheio. Porque tristezas já não servem de tampão a feridas que ainda possam subsistir.
Daniela Correia é jogadora de rugby. Mas não é apenas mais uma. O percurso levou-a a ser, hoje, com orgulho, a capitã da Seleção Nacional Feminina. Não é um título que deva ser ignorado. “É apenas mais responsabilidade, porque os desafios continuam a ser os mesmos”, admite.
Sorri, por entre palavras, que saem quase sem respirar. A vontade de contar a história é tão grande quanto a euforia, entusiasmo e empenho que, ainda hoje, leva para dentro de campo. Há 16 anos que é assim, mesmo que o corpo já não responda da mesma forma – mas a mente, essa, assume, continua fresca como no início.
Do ISMAI ao Sport Club do Porto
Daniela começou como tantas outras, a dar os primeiros passos na faculdade. “Tinha 20 anos quando conheci a modalidade, graças ao professor Nuno Gramaxo, no ISMAI”, começa. Mas nas pernas estavam já marcados 17 anos de futebol, em diferentes escalões, com títulos no currículo e a sua terra marcada no coração: a Murtosa.
O rugby surgiu como um oásis no meio de um deserto, um sonho que se tornou realidade. “Nunca tinha prestado grande atenção a este desporto. Mas algo me chamou a atenção quando conheci a modalidade, como uma paixão que surge sem se perceber”. Percebeu mais tarde o que era essa “paixão”. “É o espírito que se vive dentro de campo”. O sentido de equipa. De união. De ser mais forte quando se tem alguém ao lado. De saber que, no meio do caos, há sempre alguém que olha para ela, que nunca está sozinha.
É atleta do Sport Club do Porto há onze anos. Antes, passou pelo Boavista, logo após ter formado a equipa do ISMAI. Ainda integrou a equipa do CDUP, sempre em competição. Descobriu rapidamente o que a cativa neste desporto. “É uma modalidade aparentemente difícil de entender, mas que depois tem coisas básicas, como correr para a frente com a bola na mão, à vontade. Mas há regras, claro, e isso fez-me ficar entusiasmada”. Depois de um caminho com muitos altos, fez parte da formação da equipa do Sport Club. “Desde 2012 que alinho por este emblema, a nossa equipa está no Campeonato Nacional e vencemos a Supertaça de Portugal”, orgulha-se.
Pode hoje ser considerada uma veterana, mas reconhece que captar raparigas para o rugby ainda não é coisa fácil. “Há uma falsa ideia deste desporto, estamos a tentar alterar isso. Dizem que é violento. Eu digo que tem imensas regras para, precisamente, não ser um desporto violento”. Agora, há contacto, isso é certo. “E por isso as miúdas acham que se podem magoar”. Mas a dificuldade passa mais pela facilidade com que se acede a outras distrações. “É mais fácil desistir, porque há alternativas que não custam tanto, que estão à mão”. Encolhe os ombros.
Disciplina e rigor na modalidade
Daniela sabe que treinar é assumir um compromisso e não falhar a hora. É respeitar a equipa, comparecer quando é chamada, não faltar. Nem que para isso tenha de sair de casa em noites de inverno chuvosas ou jogar com graus negativos, de gorro e casaco.
“As coisas nunca são fáceis, e quando queremos chamar mais gente, temos sempre o mesmo problema: o treino ser às 22h00. Depois de um dia de trabalho em que ainda temos de jantar e treinar, chegar à meia-noite a casa não é fácil”. O segredo é ter disciplina, rigor, não desistir, contra ventos, temperaturas menos boas, convites aliciantes de amigos e família. “Ainda hoje é o que mais me custa”, lança. “Às vezes penso que talvez não tenha dedicado o tempo que devia às minhas pessoas, fora do rugby. É o que ainda me custa, para mim e para os meus”, diz.
As saudades do calor de casa, dos sorrisos que conhece, do abraço aconchegante dos amigos, são suplantados por momentos que nunca vai esquecer. Do primeiro ano em que foi chamada à Seleção Nacional, “com toda a curiosidade que levava no olhar”. Do foco e disciplina com que absorvia tudo o que aprendia das jogadoras mais velhas. Das repetidas chamadas a que responde sempre de forma afirmativa, com orgulho. De ser hoje a comandante de uma armada que luta, em campo, contra as melhores seleções do mundo.
“Não te consigo dizer o que se sente quando se entra em campo, é um arrepio difícil de descrever. Por mais anos que passem, o arrepio de sentir Portugal ali, nas bancadas, é mágico”, destaca. Porque ali se joga o orgulho de um país. E quando se representa um país “exige responsabilidade, equilíbrio, inteligência, crescimento. Exige jogar com alma e coração”. As saudades de ter uma “vida normal” ganham menos expressão pelas amizades que o rugby lhe deu. “Acho que os meus melhores amigos vieram daqui e que ainda hoje me acompanham”, evidencia. Porque é em campo que Daniela melhor se define. Há 17 anos com uma bola de futebol, há 16 anos com uma bola de rugby. Há 33 anos sempre a jogar em equipa. E sempre em campo.
Texto: José Reis
Fotos: Nuno Miguel Coelho