Com vista para o Douro, há um novo mural de arte urbana que eleva, ainda mais, o hábito do ser portuense. Entre alguém que estende a roupa, de forma alinhada, até à evocação da flor típica da cidade, o desafio deixado a MrDheo era livre: “na escadaria dos Guindais, podes pintar o que quiseres”. E ele assim o fez: pintou, pintou, pintou, mesmo com a chuva de inverno.
Há uma tradição que o sol, quando brilha, leva a muitas casas, passem meses ou anos, mudem-se as gerações e até se inventem novas formas mais rápidas de o fazer. Quando faz sol, é ver em casas de bairros típicos da cidade (e não só) a roupa estendida a secar numa corda que vai de janela a janela, em estendais que se encaixam em sítios estratégicos para levar com a luz durante todo o dia. É uma imagem que nos leva ao passado, ao sentido de família, ao “cheiro bom” que invade o espaço circundante com um odor que não esquecemos.

MrDheo conhece essa tradição. De ter crescido na cidade que pendura, sem medo, os seus medos à janela, que deixa que o sol enxague a nossa segunda pele. “Queria que este trabalho respirasse Porto”, assume. E até que, mesmo não sendo real, o perfume que emanasse fosse verdadeiro, portuense. É um perfume que sentimos apenas ao olhar, logo na primeira escada.

O artista urbano transportou tudo isto para um mural de dimensões generosas, no cimo da Escadaria dos Guindais. Durante um mês, decidiu contribuir para que o Porto tivesse “ainda mais orgulho da sua identidade”. Um orgulho abençoado por duas semanas de chuva intensa, “que atrasaram o trabalho”, mas não o fizeram esmorecer. “Porque pintar num sítio que me diz muito é um privilégio que não podia desperdiçar”, admite.
Decidiu “rasgar” a parede em vários retalhos, como uma “banda de desenhos” que revelam a sua cidade. “Dividi o mural em diferentes focos, com destaque para a palavra ‘Porto’, onde as pessoas se podem sentar e tirar a fotografia que irão levar como ‘souvenir’”. Mas não se ficou por aqui: convocou as flores típicas, como um jardim que vive “todo o ano, com rosas e camélias”, e pintou um rosto, de dimensões gigantescas, a quem poderia chamar, simplesmente, Porto.

“É a figura tipicamente portuense, a mulher guerreira, mais velha, que toma conta dos filhos e dos netos e não desiste de nada”. Mas alguém que conhecemos? “Nada disso, é alguém que eu inventei”. Mas não será de todo impossível reconhecer naquelas rugas muitas das mulheres da cidade, carregando no rosto uma vida de trabalho que ajudou a criar o Porto que hoje conhecemos.
Este promete ser o novo spot instagramável da cidade. É ver turistas a parar e tirar a habitual selfie, a perguntarem ao artista quem é aquela mulher de olhar meigo, sorriso terno. “Não podia ter sido um melhor local. Repara, as pessoas que sobem da Ribeira cansam-se precisamente aqui, neste sitio”, ri MrDheo. Param e olham. Olham e tiram fotografias. Levam a arte para o mundo.

No processo nunca sentiu que a cidade o questionou, contou com a colaboração dos “vizinhos” que iam dando palpites ao que ia aparecendo. Hoje, são eles os melhores cicerones de uma parede que conta uma história. Várias histórias. Vivem com alegria desta nova intervenção, como alguém novo que chegou para partilhar o bairro. Cada um contará um conto e acrescentar-lhe-á um ponto.
Até porque MrDheo não deu nome a este trabalho. Chamar-lhe Porto poderia ser presunçoso. Há mais cidade para além daquilo. Esta é apenas a sua visão. Apenas batizou a senhora dos olhos profundos. “Chamei-lhe Dona Rosa”, confidencia. Um nome tipicamente português. “Sim, era o nome da minha avó”, sorri.
Texto: José Reis
Fotos: Andreia Merca