O DDD – Festival Dias da Dança faz da (crescente) acessibilidade uma das suas motivações. Ano após ano, a programação é pensada de forma a incluir todos, deixando cair, aos poucos, as barreiras físicas e possibilitando a maior abrangência intelectual e social. Na contagem decrescente para mais uma edição, que começa já a 19 de abril, conhecemos a artista tetraplégica Diana Niepce, a intérprete de língua gestual portuguesa Cláudia Braga e a audiodescritora Anaísa Raquel. Também elas são o festival – e o festival é, seguramente, ainda mais com elas.
Diana já contou a história vezes sem conta. Do outro lado da videochamada, repete-a com a emoção de quem a descreve pela primeira vez. “Nasci com uma perna maior do que a outra”. Assim começa a sua história, em Aveiro, corria o ano de 1985.
“Perante esta evidência”, continua, “colocaram-me no ballet para aprender a andar. Como nunca tinha gatinhado, ganhei um desequilíbrio nas ancas, um problema que não me permitia ter um andar como os outros. Usei uns ferros para tentar contornar a situação, mas a dança acabou por ser importante para tentar ultrapassar esta questão”.
Os anos passaram e a fraqueza que assumia tornou-se, rapidamente, numa força. “Cresci sempre a tentar ser a bailarina virtuosa, sabes?”, atira-nos, perante as circunstâncias.
Sem medo de falhar, dando espaço ao erro, nunca desistindo, dando margem a que o corpo, na sua dimensão, pudesse também ele se assumir na sua plenitude.
Aos poucos, conhecendo a limitação que o corpo lhe impunha, encontrou na dança a melhor (ou a única) forma de expressão plena, “um lugar de experiência, de compreensão do corpo, e é esse lugar que me interessa, a de falar de coisas que me incomodam, de tensões, perversões, ao mesmo tempo que criam esplendor, chamar a atenção de pequenas dissonâncias que acontecem e que nem nos apercebemos”, acrescenta a coreógrafa e bailarina.
Diana Niepce tem hoje 37 anos. O que sempre a motivou no passado continua a ser o que a motiva, mas hoje com uma diferença: Diana é tetraplégica.
Dar a volta ao problema
Há oito anos, a 20 de março de 2014, um acidente no ensaio de um espetáculo que estava em preparação mudou-lhe as regras de um jogo que já era feito de ligeiras limitações. O projeto misturava dança e novo circo e o desafio, naquele quadro, era ficar presa pelos pés, com a cabeça para baixo, depois de uma cambalhota aérea segura por uma corda.
O movimento estava a ser executado conforme o previsto, mas o resultado não foi o esperado. “Ouvi um crac e percebi imediatamente o que tinha acontecido. Senti-me a abandonar o corpo e por isso fiz um grande esforço para me manter acordada. Era a maneira de não deixar que a morte me levasse”, refere Diana, em relatos anteriores sobre o sucedido.
Começou ali a mudança. No hospital, o veredicto: iria ficar tetraplégica para sempre. “Depois do acidente, demorei muito tempo a reformular o meu pensamento à volta do corpo. E de repente foi necessário mudar este chip. É muito violento para nós, sabes, porque não sabemos que isto vai acontecer, não é uma coisa voluntária, é uma coisa que resulta de acidentes”, assume, e que “nunca terá um fim”,
A forma que encontrou para lidar com isto foi, precisamente, pensar sobre esta nova condição. Não a escondendo e muito menos ignorando-a.
“Escrevi um livro – ‘Anda, Diana’, que vai já na segunda edição, prestes a ter uma edição em braille -, uma autobiografia construída ao longo de oito anos, o período de normatização do meu corpo. O livro tem um relato muito denso, muito violento e sarcástico. O meu objetivo não era partilhar a minha história, mas a experiência que me levou a mudar a forma como perceciono o meu corpo”, descreve a bailarina.
O espetáculo, com o mesmo nome, que será agora apresentado em Matosinhos no decorrer da presente edição do DDD – Festival Dias da Dança – a 29 e 30 de abril -, é mais um “ato de expiação” de todo este longo e inacabado processo.
“Quando estou em cena, deixa de existir um julgamento sobre a questão do corpo, prefiro mostrá-lo como ele é, sem cadeiras ou andarilhos”, com todas as dificuldades inerentes a um corpo de somente 36 quilos. “No espetáculo dou acesso à fragilidade do meu corpo num trabalho sobre tensões, sobre o risco, onde estico a corda, algumas vezes”.
Acima de tudo, sabe que o seu corpo não é igual ao do outro, mas recusa a ideia de vítima. “Não quero nada que me vejam como algo inspirador, não me interessa essa responsabilidade”.
No fundo, quer apenas que os outros partilhem com ela este campo de “experiências”, de reflexão, porque, de forma crua, “a maior parte das pessoas com deficiência só quer viver em paz com a sua deficiência e não nos colocar neste lugar em que temos que estar sistematicamente a superar-nos em prol de conseguirmos integrar a sociedade”, revela, em final de conversa.
Audiodescrição dos espetáculos
O espetáculo de Diana Niepce é um dos destaques do cartaz deste ano do DDD – Festival Dias da Dança, que arranca já no dia 19 de abril, e onde as questões do acesso a um público cada vez mais alargado se tornam uma premissa obrigatória (e presente).
“Assegurar o direito de acesso e de participação é mais do que um desígnio, é uma obrigação. Com essa consciência, o Teatro Municipal do Porto e o DDD – Festival Dias da Dança têm trabalhado para ultrapassar as assimetrias e limitações existentes, criando as condições específicas para que um maior número de pessoas possa participar e fruir da nossa programação”, revela Jonathan da Costa, responsável pelo serviço de mediação do Teatro Municipal do Porto e do DDD – Festival Dias da Dança.
“Começamos no DDD com audiodescrição, com um significado ainda mais especial, por se tratar de espetáculos de dança – no dia 24 de abril, em “miramar”, de Christian Rizzo, no Rivoli, e no dia 29 de abril, em “Anda, Diana”, no Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery”, assegura.
“E o que será, não sei bem, só sei que estou com uma grande expectativa”. O resumo, em jeito de desafio (pessoal e coletivo) é deixado por Anaísa Raquel, audiodescritora e uma das responsáveis por um dos poucos grupos organizados que trabalha, no terreno, estas matérias no nosso país e que estará presente no festival para esta nova experiência.
“Sou atriz desde 1999 e sempre tive dificuldade com os aplausos, nesse momento não sabia muito bem o que fazer. Comecei a observar as plateias e a aperceber-me que existia pouca diversidade”, diz. “Nunca via bengalas na plateia, nunca via cães guia e isso era estranho. Fui tentar perceber o porquê deste ‘fenómeno’ e se existiam recursos de acessibilidade como já tinha visto noutros países”.
Existir até existiam, mas apenas eram colocados em prática, “no máximo”, duas vezes por ano. Anaísa colocou mãos à obra. Pediu apoio à Fundação Calouste Gulbenkian, de forma a criar o primeiro curso de audiodescrição e, daí, criar um grupo de profissionais que oferecessem esta possibilidade com a devida qualidade.
“A verdade é que nos primeiros dois anos não trabalhámos muito [risos]. A maior parte dos equipamentos que contactávamos achavam que devíamos ser uma entidade de solidariedade social e que devíamos oferecer os nossos serviços”. Mas, aos poucos, começaram a ver as solicitações a chegar e a mentalidade a mudar.
“Entendemos que é uma questão social, de direitos humanos, uma questão cívica, de igualdade de acesso. É tornar a manifestação artística e cultural acessível a pessoas com deficiência visual”, resume, num caminho que “tem ainda um longo percurso pela frente”, assume.
Depois, no dia, e após um reconhecimento de palco feito meia hora antes para que os ouvintes tenham a noção do espaço a ser narrado, é operacionalizada uma audiodescrição objetiva. Um método que narra os factos tal qual surgem em palco, com todas as contrariedades que possam surgir. “Se, por algum motivo, alguém cai em palco, isso é relatado ao ouvinte. Não escondemos nada, não deixamos a nossa opinião, dizemos o que está a acontecer”, assume.
Um audiodescritor, para Anaísa Raquel, deve ser alguém “com um ego muito escondido, que não pode aparecer, já que não trabalhamos para nós, mas para o público”. “Somos apenas um veículo e, por isso, devemos ter um domínio muito grande da língua portuguesa falada no país, para além de uma grande humildade e desapego ao guião da audiodescrição”, assume.
Porque tudo se resume a partilhar emoções, sentimentos, gestos e movimentos através das palavras de um outro que está ali para o ouvinte com deficiência visual. “Não há nada mais íntimo que falarmos ao ouvido de alguém. E neste caso, iremos respirar com os intérpretes, perceber onde estamos e antecipar o movimento”, para que nada falhe no acompanhamento minucioso do que se passa em palco.
Língua Gestual Portuguesa em palco
Se Anaísa é os olhos de muitos, Cláudia é a língua (e a boca) de tantos outros. Cláudia Braga é intérprete de língua gestual portuguesa (sim, língua e não linguagem) desde 2009, depois de uma adolescência fascinada com os gestos que via à porta de uma escola de surdos por onde passava diariamente.
Cresceu com a curiosidade sobre esta forma de comunicação, de que forma é que os gestos ganham novas valências e de como a língua podia (e pode), afinal, não ser falada.
“É a forma do comunicar, a expressividade, o movimento do corpo, a expressão corporal e facial… tudo me motivou em descobrir mais”, assume a intérprete de língua gestual, atual colaboradora do Teatro Municipal do Porto e que, neste ano, se estreia no DDD – Dias da Dança.
Começou a prática regular há mais de 10 anos, sempre com a ideia clara que “dialogar é sempre diferente de interpretar”: “uma coisa é comunicar diretamente num diálogo que existe entre duas pessoas, em que não tenho que passar uma informação a terceiros. Outra coisa, diferente, é uma interpretação de algo que está a acontecer em simultâneo, em que tenho que ser fiel à mensagem que a pessoa quer passar”, assume.
No trabalho que faz em palco, “nalguns casos bastante visível, o que me deixa desconfortável, apesar de saber que é o meu trabalho”, Cláudia tem a responsabilidade de ser o guia do espetáculo para as pessoas surdas.
“Temos de ser capazes de acompanhar a expressão da pessoa que está a falar, se a pessoa está triste tenho de colocar um ar mais cabisbaixo, se a pessoa está alegre tenho que esboçar um sorriso. Tenho de fazer chegar a mensagem o mais fielmente possível ao destinatário”.
Nesta edição, os espetáculos “Anda, Diana”, no Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery, e o concerto de Luca Argel, com Nadia Yracema e António Jorge Gonçalves, no Coliseu Porto Ageas, terão acompanhamento de língua gestual portuguesa – e, portanto, com Cláudia em palco, debaixo de um foco de luz, tentando não perturbar os verdadeiros artistas em cena.
Apesar da abertura de muitas entidades nacionais – e de festivais como o DDD -, a intérprete de língua gestual reconhece que há “um longo caminho a percorrer nesta questão”, apesar de ter entrado quase diariamente nas nossas casas aquando das conferências de imprensa sobre a pandemia, feitas pelo Governo durante os diferentes confinamentos.
E um desses passos importantes a dar, ainda, é a oficialização da língua, “ela está presente na nossa Constituição, mas ainda não é reconhecida. Precisamos que esta seja considerada a língua oficial da comunidade surda e introduzir a opção desta língua aos cidadãos ouvintes”, alerta.
Uma opinião corroborada por Jonathan da Costa, do Festival DDD, que reconhece haver “muito caminho a trilhar e pontes a construir”, enaltecendo, no entanto, que o trabalho está a ser feito dia a dia com a perspetiva de tornar esta oferta presente em toda a programação.
“Uma missão que é reforçada pelo trabalho com a Acesso Cultura, da qual somos associados, e com o apoio incondicional que resulta do mecenato do BPI – Fundação “la Caixa” ao DDD – Festival Dias da Dança e à programação de dança do Teatro Municipal do Porto”, finaliza o responsável.
Texto: José Reis
Fotos: Direitos Reservados