“Vamo-nos apertar!”, dizia o autarca do Porto, Rui Moreira, em 2017, a propósito da ida de Sérgio Godinho à Associação de Moradores da Bouça, traduzindo, assim, a essência deste programa gratuito de promoção cultural e artística: fazer da cidade uma sala de espetáculos onde os artistas e o público estão próximos.
Aconteceu pela primeira vez em 2014 e tem vindo a percorrer vários espaços mais periféricos e menos conhecidos da cidade, convertendo-os em verdadeiros palcos alternativos com programação para toda a gente.
Entre 2019 e 2020, o Cultura em Expansão, projeto da Câmara do Porto, passou a concentrar a sua programação em quatro polos específicos, tendo como parceiros coletivos artísticos que têm um duplo papel: o de programadores e dinamizadores do trabalho com as comunidades, nomeadamente o Teatro do Frio na Associação de Moradores do Bairro da Pasteleira; a Sonoscopia na Associação de Moradores da Bouça; a Confederação no Grupo Musical de Miragaia; e as Visões Úteis na Associação Nun'Álvares de Campanhã.
Há, ainda, a Programação Satélite, que “apresenta um conjunto de iniciativas, para lá dos quatro territórios em foco, dando continuidade a um trabalho de articulação com outras associações, estruturas e artistas”.
Ao longo de uma década, foram promovidos mais de cinco centenas de eventos em palcos convencionais e em palcos menos habituais, envolvendo mãos cheias de artistas internacionais, nacionais e locais (leia-se aqui moradores destes territórios, como é o caso do Sr. Amadeu, da Pasteleira, que fomos conhecer). Mas mais do que quantidade, poderá falar-se da riqueza e da diversidade das experiências artísticas e culturais criadas para e com a comunidade.
Pasteleira: Em cada bairro, um artista
Marcamos encontro com Amadeu Santos à porta da Associação de Moradores do Bairro da Pasteleira. Espera-nos com um molho de chaves na mão. “Sou o carcereiro”, atira, brincalhão, enquanto se apressa a abrir a porta para nos mostrar o “salão de festas” impecavelmente asseado e enfeitado. Amadeu tem 80 anos, vive há 50 na Pasteleira e faz parte desta associação desde 1982.
Em 2022, o Teatro do Frio, dinamizador do polo da Pasteleira, desafiou o artista plástico Ruca Bourbon (Doutor Urânio) a conhecer este antigo torneiro mecânico, “artista nas horas vagas”, fã de Julio Iglesias e Roberto Carlos, e dono de uma eclética coleção de vinis (desde o Conjunto António Mafra, passando por The Fools e David Bowie, até ao Hino Nacional da República Soviética Socialista). É dos encontros que nascem as possibilidades e deste nasceu o “Baile dos Discos do Amadeu”.
“A minha aproximação ao Cultura em Expansão aconteceu por mero acaso”, conta. “O pessoal que vinha aqui, como foi o caso do Ruca, mostrou interesse nos meus discos, mas, depois, também lhes apresentei as coisas que fazia; caricaturas, poesia, desenhos, além de trabalhos artesanais que faço para passar o tempo e ganhar uma coisita de vez em quando. Eles disseram que estava aqui ‘uma obra muito porreira’ e resolveram montar um espetáculo.”
Amadeu não esquece aquele baile: “Foi a primeira vez que cantei na minha vida. Foi a primeira vez que declamei poesia feita por mim. E foi uma experiência que tive, pensei que ia gaguejar; fiz uma desgarrada um pouco ‘picante’ — ainda não estava pronta, mas depois o Ruca disse ‘vamos lá fazer isto!’, e ensaiámos — e foi um espetáculo”, recorda, de sorriso no rosto. “Nunca pensei na minha vida… eu estava à-vontade, já parecia um artista feito, cheio de palco; a família veio ver e acabaram por não ter palavras”, diz-nos sem esconder a vaidade. — Este é um dos objetivos do Cultura em Expansão: Potenciar a liberdade de criação artística de pessoas que nunca se imaginaram a pisar um palco.
Outro espetáculo de que Amadeu ainda se recorda aconteceu o ano passado e foi promovido pelo coletivo CRUA. Tratou-se de um concerto de música tradicional ibérica de “umas meninas que tocavam adufes", e que foram acompanhadas por um amigo seu “a quem todos chamam ‘Indiano’, por ter muita cultura indiana, e que sabe tocar trancanholas”. Este foi o culminar do projeto “Em Casa”, que levou este coletivo de adufeiras a percorrer o bairro da Pasteleira, durante cinco dias, oferecendo música e recebendo, em troca, receitas.
Fruto destes encontros, este ano vão nascer dois projetos artísticos: Desasossegar e Frente-a-Frente. O primeiro, liderado por Liliana Abreu, do CRUA, será uma espécie de “ode ao adufe" e propõe diferentes atividades com a comunidade da Pasteleira: sessões de toque e canto com moradoras locais, uma oficina de construção de adufes e um encontro/piquenique que vai juntar estas novas adufeiras e todos os que nele queiram participar. Em dezembro, acontece uma apresentação final. Já o Frente-a-Frente coloca novamente em palco Ramos "Indiano”, que tem “um arquivo impressionante” de bandas sonoras de Bollywood sobre as quais canta e toca trancanholas. Desafiados pelo Teatro do Frio a criar uma peça a partir do arquivo de Ramos "Indiano”, Inês Campos e Vahan Kerovpyan apresentam, nesta edição do Cultura em Expansão, um projeto que “pega em culturas pop do mundo, apropriando-se da potência delas com tambores, voz e corpo e voltando a torná-las prática popular”.
Bouça: Experimentar não os incomoda
Na Bouça, os moradores locais são presença assídua dos eventos do Cultura em Expansão. “É um sítio aonde me lembro de ir ver concertos underground no início dos anos 90. Alguns concertos eram bastante invulgares para a altura. Portanto, há uma história um bocadinho diferente de outras zonas que são alvo deste programa”, conta Gustavo Costa, diretor artístico do Grupo Operário do Ruído (GOR) e fundador da associação de música experimental Sonoscopia, que dinamiza aquele polo.
Também Tânia Dinis, artista convidada e espectadora regular deste programa de promoção artística, aponta a Bouça como um caso particular. “Na Bouça, a programação que é feita nem sempre é ‘fácil’, e tu vês a comunidade lá. Aliás, uma das senhoras que fui entrevistar para um trabalho meu estava a ver a movimentação e já estava a perguntar ‘O que é que vai acontecer hoje? É teatro? É música?’ Na Bouça, existe uma proximidade muito grande.”
Foi em 2020, ano marcado pelo distanciamento social, que nasceu o Grupo Operário do Ruído (GOR), reunindo gente com e sem experiência musical à volta da música experimental. “Pensámos em criar um projeto comunitário aberto a toda a gente, de todas as idades, partindo de um outro princípio muito simples que era não haver um preconceito sobre aquilo que é música e o que não é; ou seja, partimos do princípio de que toda a gente pode fazer música e tudo pode ser transformado em música, desde que haja uma ideia; e ideias, toda a gente tem, independentemente das suas habilidades técnicas”, defende Gustavo Costa.
Neste projeto, a música vai sendo construída à medida que se desconstroem preconceitos. “Queremos desconstruir tudo que seja uma convenção sobre o que é música”, afirma este músico. No GOR, objetos do quotidiano, como utensílios de cozinha e materiais descartados, transformam-se em instrumentos musicais “insólitos, aborrecidos ou divertidos”.
Apesar de manter o nome, o GOR vai deixar de ser “um ensemble" para passar a ser "uma orquestra”. “Queremos fazer uma edição, para ‘pôr cá fora’ algum do trabalho que foi feito durante todos estes anos”, adianta, acrescentando que este grupo vai ter “um trabalho continuado” ao longo do ano. “Por ano, costumávamos apresentar dois projetos separados; este ano, vamos criar um de maior escala que será trabalhado até a dezembro.” Do programa de 2024 constam uma oficina do GOR com o vocalista e trompetista britânico de jazz Phil Minton, um ensaio aberto, em setembro, e o espetáculo final, em dezembro.
Em Miragaia, recordar é viver: resgatar o passado para projetar o futuro
Deixamos para trás a Bouça e seguimos para a zona ribeirinha da cidade onde está sediado o Grupo Musical de Miragaia (GMM), o terceiro polo do Cultura em Expansão, que alberga, desde 2010, a Confederação - coletivo de investigação teatral, responsável pela gestão e programação do terceiro piso do edifício, dedicada, sobretudo, ao teatro e ao cinema.
Em Miragaia, a Confederação tem vindo a desenvolver trabalhos artísticos que desafiam a comunidade local a participar e que exploram, simultaneamente, o próprio território. São projetos construídos, essencialmente, à volta das memórias e dos arquivos fotográficos pessoais e coletivos, como os “Memoratórios”: “Do usado e preservado Grupo Musical de Miragaia” e “Miragaia Foi à Guerra”. O primeiro teve como ponto de partida o arquivo fotográfico do Grupo Musical de Miragaia e resultou em “photo-conversas” – formato que mistura fotografia, performance e vídeo – gravadas pela artista multidisciplinar Tânia Dinis; o segundo partiu do encontro da investigadora e antropóloga Maria José Lobo Antunes com miragaienses que foram mobilizados para a guerra colonial, e que partilharam as suas memórias e coleções fotográficas.
Fundado em 1926, o GMM foi, durante décadas, o eixo gravitacional dos moradores desta freguesia ribeirinha: teve várias modalidades desportivas, como futsal e basquetebol, um grupo de teatro, e organizava várias festas e bailes anuais (como o baile que acontecia no sábado depois do Carnaval, o “Baile da Pinhata”, evocado por Rui Brandão numa “photo-conversa”). “A associação era fundamental para a freguesia de Miragaia, para o encontro de pessoas”, ressalva a artista, que espera que o GMM se mantenha “bem vivo” porque “este tipo de associações tem vindo a desaparecer”. Neste sentido, congratula-se por existir uma “colaboração estreita” entre a coletividade e a Confederação. “Por vezes, pode existir um choque de gerações, mas é saudável”, sustenta.
Campanhã: “A mais bela fogueira começa com pequenos ramos”
ZHA! estreia em junho no Rivoli. Trata-se de um espetáculo produzido pelo Visões Úteis, e financiado pelas fundações Calouste Gulbenkian e “la Caixa”, através do programa Partis & Art for Change, com um elenco composto por vários jovens, com idades entre os 12 e os 15 anos, oriundos de Contumil, Lagarteiro e Cerco. “Não vai ser um concerto; não vai ser teatro. Vai ter um formato híbrido em que estas linguagens se juntam numa história que é contada por ciganos e não ciganos”, avança a sua diretora artística, Inês Carvalho. Este projeto nasceu a partir de outro criado, em 2021, para o Cultura em Expansão.
Há um provérbio cigano que diz que “a mais bela fogueira começa com pequenos ramos”. Se ZHA! for a fogueira, “Brado – Encontro de Vozes em Cigano Canto” é um dos “pequenos ramos” que a fizeram arder, e resultou do trabalho de criação colaborativa entre a artista Margarida Mestre, a Orquestra Ciga-Nos e elementos das comunidades ciganas dos bairros do Lagarteiro e Contumil. “O Cultura em Expansão é que nos permitiu fazer este salto do território, das famílias, dos bairros para a cidade”, afirma Inês, frisando que ZHA!, “em termos de circuito artístico, de programação, começou com o Brado”.
Se recuarmos mais no tempo, chegamos à Equipa de Rua Oriental que trabalha com crianças e jovens destas zonas da cidade e que, através do projeto Sinergias, criou a Orquestra Ciga-nos com jovens das comunidades ciganas dos bairros de Campanhã. Os educadores que desenvolvem, há anos, um trabalho de intervenção social nestes territórios, foram estabelecendo “relações de confiança e proximidade”, como explica o mediador social André Sousa. “A música, a dança e o canto são uma forma de relacionamento, de comunicação, e as relações entre os educadores e as pessoas destas comunidades eram estabelecidas através da música”, conta.
Inês Carvalho, mediadora e criadora artística do Visões Úteis, parceiro do Cultura em Expansão no polo de Campanhã, afirma que quiseram “criar um contexto artístico” para que a Orquestra Ciga-nos e o património cigano pudessem “começar a entrar nas programações artísticas e culturais da cidade”. "Brado" foi esse “primeiro contexto” através do convite a Margarida Mestre para trabalhar com a comunidade cigana. “Foi um projeto revelador e muito inaugural no que diz respeito a esta incursão”, recorda Inês.
André também frisa a importância deste projeto por ter sido “o início do cruzamento entre o trabalho educativo e comunitário e o trabalho com artistas profissionais”. “Este cruzamento permitiu a valorização e a visibilidade deste património dentro das próprias comunidades e fora das comunidades”, sublinha.
Para este ano, no âmbito do Cultura em Expansão, o Visões Úteis programou espetáculos de tablao flamenco com as comunidades ciganas de Campanhã, que arrancam já em março. Ao todo, serão quatro tablaos flamencos que vão acontecer ao ar livre, levando o público aos bairros de Campanhã para assistir a "um espetáculo profissional que integra convidados locais". Para isso, desde janeiro, uma vez por semana, os jovens destas comunidades têm aulas de flamenco. “Conseguimos garantir a continuidade de um espaço de criação comunitária”, afirma Inês, satisfeita. “Estas aulas de flamenco têm sido encontros entre talentos locais, de várias gerações, e artistas profissionais, e têm sido um acontecimento e um deslumbramento de ambas as partes”, garante.
Texto: Gina Ávila Macedo / Agenda Porto
Fotos: Renatos Cruz Santos (Cultura em Expansão) e Nuno Miguel Coelho