“Quem corre por gosto, não cansa”. Esta frase ganha ainda mais sentido quando repetida por cada um dos intervenientes da série que a partir de hoje publicamos. Corpos suados, sorrisos, respirações ofegantes, distâncias mais ou menos longas, competições mais ou menos sérias. A poucos dias da primeira corrida do ano na cidade – a Lidl São Silvestre do Porto, a 13 de março –, fomos conhecer quem corre, porque corre, como corre e quando corre. São três reportagens sobre a prática da corrida como meio para um estilo de vida saudável (e que é, talvez, a forma mais barata de trabalhar corpo e mente em simultâneo).
“A chegar. Somos seis raparigas de branco. E de sapatilhas”. A mensagem chega ao nosso telemóvel um minuto depois da hora marcada, via whatsapp.
18h01. Marginal do Douro, contagem decrescente para um fim de semana prolongado (para muitos). O sol já adormece ao fundo, junto ao mar, o céu ganha tons quentes, , a contrastar com o frio que sobe de um rio que segue o seu curso normal, indiferente ao movimento uns metros acima. Ponte Luís I, semiencerrada pelas obras que melhorarão, substancialmente, o acesso, é o ponto de encontro.
18h02. Muitos são os turistas, de telemóvel em riste, que registam o momento (mágico) em que os últimos raios pintam a(s) ponte(s) de outra cor. Passam em grupos, outros seguem sozinhos. Uns de manga curta, indiferentes à descida térmica; outros, de casaco comprido, precavidos perante um inverno que se quer fazer sentir.
18h03. Olhamos para o fundo. Corpos surgem e desaparecem, em passo acelerado, em ritmo de corrida. Há um par de namorados (arriscamos nós) que aproveita o momento para fazer uma videochamada, com a Serra do Pilar em fundo. “Hola, hola! Mira, que bonito”.
18h04. O funicular dos Guindais, do outro lado da rua, continua o seu sobe e desce. É testemunha de um movimento contínuo de pernas, bicicletas, corridas, patins, skates, trotinetes. De pessoas. Ponto de partida de muitos, ponto de chegada para outros, passagem para todos eles. Olhamos novamente para o fundo.
18h05. Alto, já as vemos. Seis “raparigas” caminham lado a lado, camisolas brancas, leggings escuras, sapatilhas coloridas, prontas para um treino de final de dia. Aproximam-se, de sorriso no rosto, entre gargalhadas, como que a colocar a conversa de um dia (ou de uma semana inteira) em ordem.
“Olá”, atira uma delas, com sorriso no rosto. Identificamo-la como a nossa interlocutora principal. Corpo atlético, cabelo loiro, atitude despretensiosa, ágil no cumprimento, na conversa, no à-vontade.
Joana Sousa, assim se chama ela. Tem 43 anos e sobre ela recai a responsabilidade de coordenar (“e incentivar”) o grupo que viaja de Gondomar ao Porto todas as semanas, para um treino conjunto. “Não é difícil porque todas elas têm um objetivo que tentamos cumprir e acompanhar”, assume a treinadora, responsável por um ginásio em Gondomar.
Todas as sextas-feiras, “mais ou menos a esta hora”, junta-se a cinco mulheres para uma “terapia individual e de grupo”: uma corrida pela marginal, de forma a intensificar o treino assumido com cada uma delas. “Respeitando os objetivos traçados, os ritmos e os tempos de cada uma, e nunca deixando ninguém para trás”, resume.
Correr para aumentar a autoestima
Olívia Coelho sorri com os olhos assim que a cumprimentamos. É a “aquisição” mais recente do grupo. Aos 49 anos, e a poucos dias de virar a página e iniciar uma nova década, decidiu que era tempo de parar.
“Foi um clique que senti, a poucos dias dos 50 anos. Precisava de fazer algo por mim”, revela. Pensou em alternativas, mas a corrida surgiu naturalmente, impulsionada pelas outras colegas de treino.
“Para mim o mais importante é o contributo que tem dado à minha confiança. Costumo dizer que tenho uma autoestima de pedra”, acrescenta, “o mesmo é dizer, zero”. Sorri de forma condescendente, como que a assumir que não há milagres.
Mas assume, neste olhar cheio de esperança, e por entre as palavras, que o sentimento é ainda o de um caminho a ser percorrido, de um percurso que o desporto tem ajudado a trilhar.
Em outubro de 2020, decidiu dizer ‘basta’. “Tenho um trabalho muito sedentário [gerente de loja na área das telecomunicações], passo muito tempo sentada em frente ao computador, o que levou ao nível físico em que cheguei e que me levou a ficar desmotivada. Decidi inscrever-me num ginásio e começar a fazer treino acompanhado”, esclarece, “e este passo foi o mais importante para a mudança: permitiu-me ganhar autoconfiança e consciência do lugar onde já estive e onde estou agora”.
Olívia sabe que o caminho não termina aqui – “sei que agora consigo fazer mais do que há uns meses, mas há ainda muito para fazer” – mas encontra, nos pequenos passos, vitórias para o seu dia a dia. “Ainda me lembro do dia em que, pela primeira, fiz 10 km [de corrida]. Emocionei-me muito porque achava que não conseguia, mas havia sempre uma voz que me dizia ‘vai, vais conseguir, continua’”.
“E essa é uma das mais valias do treino em grupo: a motivação entre pares. Umas motivam as outras, ninguém é menos que a outra”, diz Joana. “O incentivo é um meio importante para que nos consigamos superar, mesmo que nos digam o contrário”. Motivação, força de vontade e acreditar que o caminho tem sempre um início e um fim e que temos que o alcançar.
Treinos regulares
Ter “mente sã em corpo são” nem sempre é uma equação fácil de resolver. Encontrar o equilíbrio perfeito entre as duas ‘variantes’ nem sempre é fácil, há que tentar, há que errar, há que procurar o caminho certo – ou, pelo menos, percorrer aquele que lhe pareça o mais seguro.
“E depois há um dia em que te dizem que tens uma depressão, profunda, e não queres acreditar que o que sentes é aquilo”.
Susana Ribeiro, 46 anos, tem claro o momento em que se apercebeu que, afinal, “aquilo de que toda a gente fala”, uma das doenças do século, “não acontece só aos outros”. Foi diagnosticada com uma depressão grave quando pouco o fazia prever, um estado de letargia que a levou a deixar de ter o gosto pelos prazeres da vida.
“E é difícil saíres desse lugar sem força de vontade”. Felizmente o exercício físico surgiu como a porta de saída.
“Lembro-me que comecei aos poucos, na rua onde vivo, a tentar correr. Tentava correr, mas não conseguia, cansava-me e tinha que parar. Mas não desisti”.
Os treinos começaram há dois anos, de forma regular, e hoje não encontra melhor “momento” para se encontrar consigo mesma.
“É um ‘sítio’ onde não existe mãe, não há pai, marido, filhos. É como se fosse um on e um off na nossa vida. Um momento só nosso”, reconhece, acrescentando que tudo tem servido para ultrapassar o momento “menos bom” e caminhar para a solução de um problema comum a muitas pessoas.
Correr com objetivos definidos
A corrida pode ser, aliás, o desporto mais democrático pela multiplicidade de oportunidades, pela diversidade de oferta, pela adequação a diferentes ritmos.
“O importante é que todos tenham consciência do porquê de praticarem desporto, qual o objetivo traçado e quais as resoluções a que se propõem”, admite Joana, logo respondendo à nossa questão seguinte: “sim, todos os objetivos são válidos se fizerem sentido para cada pessoa”.
Que o diga Isabel Carvalho, de 50 anos, que iniciou a corrida para “emagrecer e fugir à rotina do trabalho”.
Que o diga também Susana Rios, que, aos 52 anos, assume que a corrida a “ajudou a sair da zona de conforto e [a] praticar um envelhecimento ativo, satisfeita com a autoimagem”.
Que o diga Cecília Martins, de 48 anos, que “se quer superar”, competir consigo mesma, mostrar que consegue “fazer mais do que acho que é possível”.
São assim várias as razões que levam a que se saia à rua, faça chuva ou faça sol, para cumprir este objetivo.
Há quem o faça por “vício”, há quem assuma que esta é uma “droga” que provoca uma ressaca difícil de gerir, há quem reconheça que é parte “essencial” da rotina do dia a dia.
E a receita é simples: “ter calçado apropriado, equipamento adequado, um objetivo bem definido e nunca começar sozinho. É sempre importante existir um acompanhamento profissional no início, para que não se cometam erros como lesões que comprometam o futuro”, resume Joana Sousa.
No fundo, “treinar com consciência” e sem idade para começar. E com material aparentemente simples: “Força de vontade. Faz toda a diferença”, remata Isabel Carvalho, enquanto corre para se juntar às colegas que já se encaminham, em passada larga, para o treino semanal.
Texto: José Reis / Ágora
Fotos: Guilherme Oliveira e João Coelho