13/11/2024

Nas histórias que fazem os dez anos do Cultura em Expansão, a música está presente em quase metade delas. Em concertos ou produção inédita, foram muitos os artistas (em diversas áreas) que contribuíram para robustecer um programa que se faz de múltiplas propostas. Desta vez, a voz é dada à compositora Ângela da Ponte, que criou uma das novas “Obras Portuenses da Década de 20” que estreou em 2021.

 

Se hoje tivesse de construir uma partitura sobre a “sua” cidade do Porto, a obra seria seguramente mais ruidosa do que aquela que criou há uns anos, com menos espaço para sons simples, algum silêncio, já que, admite, “tem vindo a ficar com mais barulho”.

 

A conversa dessa manhã é interrompida, algumas vezes, por sons de trânsito, telemóveis que insistem em tocar, conversas uns decibéis acima do desejado. É sobre este “ruído” que Ângela da Ponte fala. A compositora açoriana, de 40 anos, que há 20 anos trocou o arquipélago pelo continente, refere-se ao frenesim, ao constante movimento como uma das maiores transformações que tem visto na cidade nos últimos anos.

 

 

“Como cidade cultural oferece muito, mas acho que afasta um pouco pelo excesso de ruído. Acho que o segredo está em criar esse equilíbrio”, admite, a poucos passos do local onde vive, perto do bairro da Bouça.

 

Aliás, foi este o local que serviu de inspiração para a obra que criou para a edição de 2021, a convite da Sonoscopia, uma das estruturas responsáveis pela programação do ciclo municipal.

 

“Eu conheci o Gustavo [Costa] na ESMAE, ele foi meu professor de eletroacústica. De uma forma aleatória, soube que a Sonoscopia estava a mudar de local e que procuravam uma colunas de som, que eu tinha. Começamos a conversar sobre a cedência desse material e, daí, acabou por surgir um convite para integrar este projeto de compositores”, revela Ângela.

 

Paisagem sonora da vida de um bairro

 

O projeto a que se refere, “Obras Portuenses da Década de 20”, tinha como premissa o convite a compositores da cidade para a criação de obras inéditas sobre o Porto. Uma visão pessoal sobre os territórios de ação do Cultura em Expansão, uma leitura sonora sobre a realidade de uma cidade multicultural e social.

 

 

Ângela da Ponte orgulha-se de ter sido a primeira não-portuense a ser convidada. Apesar de tudo, sente a cidade como sua. “Fiquei feliz pelo convite, mais ainda pelo espaço que me atribuíram”, a Bouça, local que conhece bem por viver ali, com vista para o bairro assinado por Siza Vieira.

 

Decidi fazer uma abordagem de paisagem sonora, já que esta é uma zona muito diversa, tem um caminho de ferro do início do século XX onde é agora a linha do Metro”, revela. Mas aí descobriu uma história ainda mais especial e que a conectou ainda mais com o local.

 

“Numa outra pesquisa descobri a Casa das Pedras, um local onde um outro açoriano, Antero de Quental, também passou. A história revelou-me que, num encontro com escritores na década de 70, ele tentou suicidar-se neste local”, acrescenta. Aliás, o episódio marcou-a tanto que, na peça, decidiu incluir, de forma literal, o som de pedras, numa referência a esse episódio.

 

 

Aliás, a obra estreada, “inTrailsout”, tinha essas duas componentes: “uma parte eletrónica de paisagem sonora que acompanha uma interpretação instrumental do que são os sons da Bouça”, diz. E aqui nem o som da cadela que, todos os dias, contribui para o ambiente sonoro onde vive, foi esquecida.

 

Pontos positivos de um programa municipal

 

Estreada a 18 de setembro de 2021 em Campanhã, a peça (e mais três de outros tantos compositores) contou com a interpretação ao vivo dos músicos João Dias na percussão, Carina Albuquerque no violoncelo, Clara Saleiro na flauta e Frederick Cardoso no clarinete. Numa lógica de uma “partitura mais encerrada em si mesma”, distante do que faz habitualmente – “que é mais livre ou deixada ao acaso” -, a apresentação contou com uma plateia com alguns curiosos. No entanto, em 2021, este projeto estava ainda a dar os primeiros passos e o impacto, admite, não foi aquele que esperava.

 

 

“Acho que hoje o impacto é muito maior, mas quando estreei houve pessoas a sair a meio do concerto. E, atenção, está tudo bem com isso. Acho que talvez não estivesse à espera daquilo, só tenho de respeitar”.

 

A obra foi apresentada em vários locais da cidade, mas foi na Pasteleira que a obra encontrou finalmente o equilíbrio desejado. “Já tínhamos um publico maior, estava preparado para receber estas propostas e a reação foi muito positiva”, refere. Talvez para isso tenha contribuído a circulação que a peça foi fazendo, que a ajudou a crescer e a tornou “ainda mais profunda, mais sentida, menos mecânica”.

 

A compositora também foi parte desse público ao longo destes anos, “mais nas edições de 2021, 2022”. Por uma questão de comodidade e identificação, a Bouça foi sempre o local que procurou para as propostas apresentadas. “Vi alguns concertos programados pela Sonoscopia, é uma experiência muito interessante assistir a concertos em espaços que não estamos à espera”.

 

 

Como ponto (mais que) positivo do Cultura em Expansão, aponta a “aposta pedagógica” desenvolvida nos anos mais recentes, num “contacto crescente com a comunidade, numa vertente de educação”. Para o futuro, o desejo é que se alargue, ainda mais, as propostas culturais “às artes performativas”. “Talvez um pouco mais de dança e até de poesia era a minha sugestão para os próximos dez anos”.

 

Nestes dez anos, é também a Ângela da Ponte que se agradece o contributo para o sucesso do programa municipal. É mais uma convidada a comemorar este aniversário, a soprar as dez velas e a pedir um desejo (ou dez!), no final.

 

Texto: José Reis

Fotos: Rui Meireles e Renato Cruz Santos

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