Estudar um instrumento é como assinar um compromisso para a vida: a partir do momento em que ele entra na vida, dificilmente sai. É o chamado “relacionamento sério para a vida toda”. Leonor, Martim, José e Andrej estão ainda a iniciar um longo percurso, mas sabem que, seja aqui ou fora do país, a tempo inteiro ou parcial, o piano será sempre um fator de identidade. Falará por eles, será a voz que, porventura, não conseguem ter. No Dia Mundial do Piano, que se comemora nesta quinta-feira, 28 de março, fomos ao encontro deles, de os ver, ouvir e de os escutar. Eles escolhem os autores de que mais gostam. O que se segue é um recital a oito mãos no Conservatório de Música do Porto.
Martim Pereira e o gosto pelo romântico Lizst
Quem o vê entrar de mochila ao ombro, cabelo encaracolado, entre o desalinhado e o conscientemente despenteado, olhar malandro e sorriso tímido de quem chegou atrasado a um encontro marcado, não imagina que das mãos de Martim sairão, dentro de minutos, verdadeiras melodias intemporais. Será que o pianista também tem um visual tipo? Se sim, Martim foge à regra. Se não, é um contemporâneo da música clássica.
Há uns anos, muitos, cuja conta já se perdeu pela espuma dos meses, o piano não estava nem nas suas melhores equações. Curiosamente, começou pela bateria, “com aulas no Curso de Música Silva Monteiro”, tinha Martim Pereira seis anos. Um ano depois, fez provas para integrar o ensino integrado do Conservatório de Música do Porto, com vários instrumentos ao dispor, como uma experiência para entender onde se encaixa melhor. “Eu tocava bateria, mas o que queria era mesmo o trombone”, volta a sorrir como quem soube fintar o destino – ou simplesmente aceitou o que o destino tinha realmente traçado.
Mas quando os dedos encontraram as teclas do piano nada mais interessou. “Afinal, era para isto que tinha mais jeito”, diz hoje, dez anos depois da audição. O pai já tocava em casa, mas nunca imaginou que, uns anos depois, seria ele a sentar-se ao piano e a deixar com que as peças fluíssem tao facilmente. “Dá-me alegria, prazer”, revela.
Martim tem 17 anos, está a terminar o 12º ano e, a curto prazo, passará pelo estrangeiro. “Por Amesterdão”, tem a certeza. “Não é pela cidade, mas sim pelo professor que lá está, porque acho que esta relação de professor e aluno é muito importante”. Para isso tem-se focado e concentrado muito em ser mais e melhor pianista, com as aulas no Conservatório, com os treinos em casa, num “bom piano” de cauda que tem em casa e que dá música a todo o prédio onde vive. “Há um ou outro vizinho que se queixa, porque gosta de dormir até mais tarde”, conta, a rir. Um vizinho que se levanta às cinco da manhã para fazer surf e regressa ao final da manhã, para repor o sono que deixou a meio. “Mas nunca tive problemas com os ensaios em casa”, revela.
José Freitas e os menos conhecidos Grieg e Scriabin
Se Martim tem ar de “bad boy”, José é o oposto: ar de miúdo certinho, focado, determinado, com objetivos claros, parece que não levanta a voz perante uma discussão. Fala de forma pausada, como que a tocar, ao de leve, cada tecla do piano de cauda que trata por tu, a cada movimento que faz. Conhece os cantos à casa melhor do que ninguém, entrou por aqueles corredores aos seis anos e só os vai deixar agora, a terminar o 12.º.
Mas o piano não foi amor à primeira vista, até porque na família não havia ninguém diretamente ligado a esta área. “Foi apenas no 7.º ano que me apercebi que queria realmente dedicar a este instrumento”, revela José Freitas, de 17 anos. “E tudo graças a um professor novo na altura, que me ensinou a ter uma relação mais próxima com o instrumento. Fez-me olhar para a música de outra forma e acabei por me apaixonar”, relata.
A relação que se tem com o instrumento é quase tão importante como aquela que se tem com o professor, porque só nesta trindade perfeita se consegue chegar mais longe – e com maiores capacidades. “Há professores que se tornam inspiração, referências artísticas”. E que permitem com que a arte se desenvolva plenamente.
José é, dos quatro intervenientes desta reportagem, o único que pensa o piano, neste momento, como um plano B. Ou talvez um plano A numa perspetiva mais distante. “Frequento o ensino dito normal e depois venho para o Conservatório fazer as restantes disciplinas de música”, em regime complementar. Na hora de decidir – a hora H, onde o caminho vai para a esquerda ou para a direita – a razão pesou mais que o coração. A certeza pesou mais que a incerteza. Mas não foi o amor, seguramente, a ditar as regras da balança.
“Sinto que a situação da cultura e da música, particularmente no nosso país, não é fácil. Acaba por ser muito difícil viver exclusivamente do piano”. É por isso que nos últimos dois anos se dividiu entre dois amores mais ou menos recentes – o piano e a medicina.
“Mas acho que finalmente cheguei a uma conclusão, que é definitiva”, sorri. A Medicina. Mas sempre com o piano por perto, numa personificação real de um médico-músico. “Por acaso até fiquei surpreendido porque ao tentar perceber se havia mais gente, descobri que há várias pessoas que se debatem com este problema e esta decisão”, revela.
Por agora a decisão está tomada: por entre receituários e utentes queixosos, haverá sempre tempo para Bach, “o pai de todos os compositores”, mas também para Ligetti, Scriabin, Grieg e Schumman. “São nomes menos reconhecidos do que deveriam”, assume.
Leonor Pereira não resiste a um clássico de Chopin
O que vemos pode dizer mais de nós do que aquilo que nós conhecemos de nós próprios. Leonor bem pode dar o exemplo, do nada descobriu o “seu” tudo. E o seu “tudo” descobriu-o num programa de televisão, “num concerto que estava a passar”. “O meu pai é músico, acho que, de certa forma, isso também influenciou um pouco o querer tocar”, diz.
Leonor Pereira tem 16 anos, frequenta o 11.º e estuda no Conservatório desde o 2.º ano, depois de aulas particulares com uma professora que lhe ensinou tudo o que precisou de aprender para ser admitida naquele estabelecimento de ensino. Aos seis anos, ajudou-a a não desistir, a insistir, a admitir que podia sempre fazer melhor. Conseguiu ultrapassar as provas com distinção e a entrar no ensino de piano.
Hoje, tocar é algo que já faz em modo “ADN”. “Para mim o piano é o melhor instrumento, porque sinto que, com ele, se pode fazer tanta coisa, por ser um instrumento harmónico acho que é muito fácil passarmos aquilo que estamos a sentir no momento”, destaca Leonor.
No meio de todas as aulas, tem uma hora e meia de piano por semana com a professora e “um sem número de horas de treinos em casa”. “Num piano de cauda, que são os melhores”, acrescenta, a rir.
Apesar do romantismo que existe entre o piano e a pianista, a relação tem que ser alimentada com “muito estudo, muito trabalho, muita insistência, até porque preparar um programa não tem um tempo estipulado”. Mas hoje a forma como encara tudo isto já não é com nervosismo, é com sentido de missão.
Porque subir a um palco, encontrar-se plenamente com o piano, construir uma simbiose perfeita entre humano e instrumento é algo que gostaria muito de fazer acontecer. Hoje quando se senta em frente ao piano já não sente medo, converteu-o em confiança. Contornou o nervosismo com a peça na ponta dos dedos, sem falhas. Sentir como ninguém sente é sinónimo de sentir mais e melhor.
“E se for para tocar Chopin, então é mesmo um momento especial”. É como se o romântico Chopin se apoderasse da sala e fizesse daquele ato um momento único, irrepetível.
Andrej Savic e o impressionismo de Ravel e Debussy
Não é de todo irrelevante destacar, neste momento particularmente conturbado, o quanto o Leste da Europa nos deu belos músicos, excelentes compositores, uma panóplia de referências que, ainda hoje, se tornaram intemporais. O tempo de instabilidade não apaga a história inigualável de uma região. A disciplina que os países de Leste deixam nos mais novos fazem com que grandes nomes da música clássica provenham desse espaço, de moradas longínquas, algumas delas hoje expostas pelas piores razões.
Andrej Savic é um desses casos, nasceu na Sérvia e cresceu no meio de uma família de músicos. Senão vejamos: a mãe é flautista, a tia é trompista, tocavam numa orquestra onde todos se conheciam e, por casa, sempre teve vários instrumentos de metal e madeira espalhados. “Mas quando vi o piano de cauda, não sei… é como se tivesse acabado a procura ali”. O músico, que vive em Portugal há seis anos, começou a tocar aos sete e aos 12 anos, “quase 13”, já dominava as notas de música como poucos.
Foi rapidamente integrado no Conservatório e, apesar de reconhecer que nem tudo é fácil neste processo, agradece aos professores e colegas por terem tornado “esta integração menos difícil”.
De uma família de músicos, Andrej quer ser solista. Encher um palco com a música e receber o retorno pela sua dedicação. Não arrisca dizer que é isto que vai acontecer, só sabe que da música não quer fugir. “Seja aqui ou no estrangeiro”.
Hoje, perante este desafio de se conseguir destacar entre os outros, sabe que não será fácil. “Para ser profissional não basta querer, é preciso saber fazer. É preciso trabalho, acreditar que é possível, conseguir executar os programas e querer mais e mais e mais”, acrescenta Andrej.
Até porque a música nos faz “desenvolver como pessoas”, admite este jovem pianista. Mesmo aqueles que não querem, que acham que não têm jeito, que acham que são “duros de ouvido”.
“Toda a gente devia ter formação musical, mesmo que básica”, destaca. Porque só através desta sensibilidade que só a arte consegue dar, conseguimos ter resposta para muitas das questões que ainda hoje se colocam.
Reportagem: José Reis
Fotos: Andreia Merca