À volta de uma mesa, numa criação coletiva do início ao fim, o Grupo de Teatro Comunitário do Bonfim celebra o primeiro aniversário com a estreia do primeiro espetáculo . “Como se nada fosse” conta com 17 intérpretes, de diferentes gerações, num texto que reflete a “urgência da mudança e a espera que nunca acaba”. Há duas sessões nos Salesianos do Porto, ao ar livre e com vista para o “mundo”, no sábado e domingo, às 21h30, no âmbito do Cultura em Expansão.
Por esta altura, na Argentina, a companhia Matemurga nem imagina que foi a principal culpada (no bom sentido) por uma raiz que dá frutos, todas as semanas, na freguesia do Bonfim, no Porto. Em abril de 2022, integrado na programação do Cultura em Expansão, este grupo composto por habitantes do bairro de Villa Crespo, no perímetro urbano da capital, Buenos Aires, deslocou-se ao Porto para a apresentação de “Vizinhança Ferida”.
Numa praça, 20 moradores locais – os tais “vizinhos” – contavam histórias que a modernidade apagou nesse bairro de memórias, ao longo do tempo. À volta de uma mesa, durante um jantar, reuniram-se para refletir sobre a paisagem, a diversidade, a mudança das cores, das formas, das escalas do “seu” bairro.
Recordações que foram passadas de vizinhos para vizinhos, em plena Praça da Alegria, no coração sul do Bonfim, freguesia “fronteira” do Porto tal como o conhecemos hoje (uma expressão que surgirá mais à frente neste texto).
Um mês antes da chegada da companhia ao Porto, um grupo de pessoas, habituado às lides do trabalho com a comunidade e ligado a estruturas e coletivos como a Pele, decidiu unir-se e criar uma associação que tornasse possível um trabalho mais abrangente, duradouro e intensivo neste local. O ímpeto de acolher a companhia argentina – com quem criaram parceria a partir de então – foi o impulso que faltava para a concretização dessa vontade.
Em março de 2022 formalizou-se o Grupo de Teatro Comunitário do Bonfim. Em abril acolheram a companhia Matemurga. E assim começou uma história que completou, no mês passado, o primeiro ano de vida, com direito a uma celebração especial: a estreia do primeiro grande espetáculo, neste primeiro fim de semana de maio, num canto “com vista para o mundo”.
Dos ensaios…
Os estrados mudam de sítio. Não é o local previamente definido, mas a chuva, que aparece sem aviso, não permite que se coloque o palco onde ele tem de estar. “A confiar nos sites de surf, o tempo vai melhorar”, ouve-se. Enquanto essa melhoria não chega, resguarda-se o material, e explora-se o local que vai acolher o grande dia. Ou melhor, a grande noite: a da estreia de “Como se nada fosse”, do Grupo de Teatro Comunitário do Bonfim.
Pouco depois das 20h00 de quarta-feira, reúnem-se para ouvir as explicações dadas pela diretora artística, Susana Madeira. Um a um, todos são visados nas observações. Há coisas a melhorar: a cabeça que não levantou o suficiente, a deixa que não foi bem atirada, o olhar que devia ser menos direto, mais insinuador. Nome a nome, são reparos de última hora.
Não são profissionais, mas amam aquilo que fazem. Cristina Queirós é um desses exemplos. Sonhou ser atriz, começou com 15 anos em projetos da escola, a partir de então decidiu experimentar as diferentes formas que o teatro tem para oferecer.
“Comecei pelo teatro do oprimido, um teatro que leva a uma maior discussão de diferentes temas e que me permitiu perceber as diferentes visões de um mesmo tema”, revela.
Seguiram-se projetos comunitários, de relação com o local que conhece melhor que muitos – “nascida e criada no Bonfim”, assume – e a certeza, cada vez maior, de uma vida que não pode passar ao lado das artes de palco, seja ele qual for.
“Infelizmente a vida levou-me por outros caminhos. Tenho apenas o 12º ano, feito com muito orgulho, mas sonho ainda poder ir para a universidade”.
Hoje é técnica numa clínica de hemodiálise e esta experiência “intergeracional” permitiu-lhe entender melhor “o lado mais velho, consigo vê-lo de outra forma”. Para isso muito ajudou os intercâmbios com vários grupos similares a este, a partilha de histórias e conceitos em grupo e uma formação na ACE, “às segundas e quartas-feiras”, que proporciona essa amplitude que considera ser fundamental na visão que se tem do mundo.
Talvez por isso, não está nervosa. Aguarda o início do ensaio. Porque sabe que é aqui que é “mais feliz”. Mesmo que o cansaço de oito horas de trabalho já pese no dia que leva nas costas.
… à partilha na mesa...
O Grupo de Teatro Comunitário do Bonfim nasceu também do sonho de João Miguel Ferreira, hoje presidente da associação MEXE e o timoneiro de um barco que segue sempre em frente. O grupo tornou-se mais coeso logo após a pandemia, com encontros regulares, pela “necessidade de troca de experiências da cidade, das memórias pessoais, da importância e papel do teatro de comunidade numa cidade como o Porto”.
Todas as semanas, os elementos, que se conhecem entre si de outras experiências, reuniam-se para encontros sobre tudo e nada. “Pedíamos que trouxessem alguma coisa para partilharmos. Fotografias, músicas, filmes, objetos, até trabalhos feitos e que melhor identifiquem cada um deles”. Dá exemplos: “descobrimos pessoas que sabem fazer licores, doces, há quem saiba construir gambiarras coloridas”.
O processo para este primeiro espetáculo começou “mais a sério” em dezembro. Foi aí que olharam, “com compromisso”, para um trabalho feito a várias vozes.
“Os encontros passaram a ser cada vez mais sérios, onde trabalhávamos tudo com tempo. As histórias, as ideias, os conceitos. Trabalhar o texto foi uma experiência radical, muito lenta”, revela João, num intervalo entre indicações. “Estar com eles era como entrar numa bolha, sem tempo limite para a discussão dos temas”.
Todos têm voz. Todos podem dar a opinião. Quando concordam e, acima de tudo, quando discordam. “É muito claro para todos que, aqui, não há ninguém que saiba mais que ninguém. Há um verdadeiro interesse em ouvir o outro”, acrescenta.
“No fundo, acredito que a sociedade é isto. As televisões passam as piores características da condição humana, mas estas pessoas aqui, quando se olham nos olhos e têm respeito pelo outro, são o reflexo do que é a sociedade”.
O grupo conta com o apoio da Junta de Freguesia do Bonfim, um território que é, nas palavras do diretor da associação, um território de fronteira, “entre um Porto mais moderno e um mais antigo”.
“É a freguesia que aparece no Guardian como sendo um dos dez bairros mais cool da Europa, mas que, ao mesmo tempo, tem ainda uma população muito envelhecida e onde o associativismo, com destaque para o futebol, está ainda muito marcado”, diz João.
Tudo está presente neste espetáculo. No trabalho do grupo que agora para uma “pausa merecida” e depois retoma os trabalhos, com vista à celebração dos 50 anos do 25 de abril. “E os interessados ainda se podem juntar, somos uma porta aberta, onde todos podem entrar e discutir”, resume.
… até ao resultado final.
O preconceito de décadas marcadas pela ditadura fez com que não tivesse aceitado o convite que mudaria a sua vida. “Aos 16 anos fui convidada para fazer parte do Teatro Experimental do Porto”. O sorriso no rosto não carrega mágoas, aceita o destino como algo que não podia negar. Eram “outros tempos”.
Hoje, aos 83 anos, Marília Guimarães disse “sim” ao sonho e há dez anos que integra projetos de teatro feitos com a comunidade. “Dá-me liberdade, muita liberdade”. Liberdade para partilhar, liberdade para aprender. “É como uma família, tratam-me por tu, não me colocam de lado por ser mais velha”.
Tem memórias de um tempo que deixou poucas marcas de boa lembrança e, hoje, partilha histórias que ninguém mais terá a oportunidade de viver. “No meu tempo, a Praça Gomes Teixeira era diferente…”, começa a contar.
Foi aqui, com esta mesma história, que despertou a curiosidade dos encenadores Hugo Cruz e Susana Madeira, em 2012, quando integrou o espetáculo “Peregrinações” no âmbito do projeto “Manobras no Porto”.
Hoje tem o texto na ponta da língua. Decorar é coisa que ainda faz com facilidade. “Andei a ler em voz alta, de um lado para o outro”. Enquanto arruma a casa, vai repetindo, em voz alta, as deixas do espetáculo. “Digo para mim e depois vou ver se estou certa”.
Do espetáculo há um momento que destaca. Pela força do discurso, pelo sentimento que lhe desperta. Na realidade, não sabe explicar bem porquê. Mas sabe que é um trecho que lhe toca. Que mais gosta.
“- É do ‘Spartacus’. Gosto da frase que digo.
- E consegue dizer essa frase aqui, sem estar dentro do espetáculo?
Claro!
[Faz uma pausa, um silêncio que não é entrecortado pela chuva, que parou, e pelo vento, que amainou]
- Juro, juro que li um livro chamado ‘Spartacus’. A evolução é tão lenta e a vida é tão curta, e desistiu da luta. Spartacus era um escravo romano e os escravos matavam-se para não serem mortos. Estou a falar dos gladiadores."
Sorri no final, com o rosto todo. Não falhou uma única palavra. Decorar o texto entre os afazeres diários da lide doméstica foi, afinal, mais uma prova superada.
Texto: José Reis
Fotos: Andreia Merca